Amarelo: a cor da vida e da morte é a mesma
Após 15 anos no poder (1930-1945), Getúlio Vargas ainda conseguiu voltar à presidência do Brasil em 1951, quando foi aclamado com o voto popular. Entre 1951 e 1954, Vargas investiu mundos e fundos em diversos setores industriais. Destarte, podemos afirmar que o desenvolvimento econômico era o foco do mandato de Vargas, tendo como fio condutor principal as indústrias. Influenciado pelos países capitalistas centrais, o Brasil bebeu da “fonte da esperança”, produzindo uma ideia de que o futuro só poderia esperar os brasileiros com otimismo.
“Comprando” a ideia de um futuro melhor, os setores burocráticos realizaram alianças com o governo Vargas, no intuito de planejar e possibilitar a política industrial. Desta forma, o então presidente do país, conseguiria defender a independência econômica do Brasil. Para este fim, o governo procurou estabelecer uma relação de apoio com os Estados Unidos, inclusive incentivando a vinda de empresas estrangeiras, sondando possibilidades de crédito, assistência técnica e até trocas comerciais com os avassalados países europeus pós-II Guerra Mundial.
Como nem Jesus Cristo agradou a todos, Vargas também não fez este prodígio. A mídia, os setores burocráticos e os militares demonstraram insatisfação com o governo no decorrer do mandato. Um dos motivos da crítica ao governo, foi por este se “vender” como nacionalista, apesar usar capital estrangeiro para desenvolver o país. No entanto, na medida em que olhava para fora, para o exterior, Vargas e seu plano de governo buscavam empréstimos públicos e privados, reforçando assim o fundamental papel do Estado e das empresas públicas no desenvolvimento econômico de um país.
Devemos ressaltar aqui que, a Era Vargas também cativou olhares positivos, principalmente daqueles que o elegeu: o povo. Uma das principais ações para o sucesso de Getúlio com as massas populares, foi a legislação que previa normas que apontavam os deveres e direitos dos trabalhadores, a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) de 1943. Influenciados por todo esse contexto, muitos brasileiros começaram a confiar na ideia de um futuro melhor, com mais empregos e qualidade de vida para sua família. Com o surgimento em massa de novas indústrias, a demanda por mão-de-obra cresceu, principalmente nos grandes centros urbanos, como São Paulo. Como aponta Paulo Fontes, essa demanda foi solucionada, essencialmente, pela migração de brasileiros, sobretudo nordestinos, que alteraram o perfil socioeconômico do país.
De acordo com o historiador Paulo Fontes (2004), São Paulo foi a “febre da época”. Muitos nordestinos sonhavam com uma vida melhor, possibilidades de ascensão social e econômica, e condições dignas de trabalho. Os homens foram os que, em números, mais realizaram essa migração. Isso se deve à sociedade patriarcal brasileira do século XX, que atribuía ao homem o papel de chefe familiar, trabalhador e provedor da qualidade de vida da família. Fontes (2004) aponta ainda que a migração acontecia de forma parcelada e, às vezes, todos membros da família migravam para a cidade grande em busca de emprego. Enquanto isso não ocorria, correspondências eram trocadas entre os familiares e amigos, uma rede social que permitiu que tantas pessoas procurassem novas vidas, em grandes cidades.
Devemos realizar aqui algumas considerações sobre o processo de migração no século XX. Primeiro: como já colocado anteriormente, os principais agentes desta atividade foram os nordestinos. Sendo assim, a maior parte dos migrantes foram negros e negras. Segundo: as condições de viagem até um centro urbano, como São Paulo, eram precárias. Seja de trem, barco, ônibus ou pau-de-arara, havia superlotação das conduções. Paulo Fontes (2004) entrevistou alguns trabalhadores que saíram de suas terras para ir para São Paulo; um deles relatou a experiência da locomoção até a cidade grande: “aquilo era como um navio negreiro dos escravos africanos”.
Muitos desses migrantes pensavam em ir para São Paulo, trabalhar por um determinado período e voltar para suas cidades natais, pois acreditavam que essas localidades rurais em que não eram exercidas as leis trabalhistas propostas por Vargas, poderiam melhorar. Entretanto, muitos nordestinos se mantiveram nas grandes cidades, mesmo em condições precárias: bairros com pouca infraestrutura, saneamento básico e saúde; e péssimas condições de trabalho. Descrevendo o cotidiano próprio e de migrantes que viveram na favela do Canindé em São Paulo/SP, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) abordou de forma sensível e tocante as condições de vida de quem era pobre, negro e migrante no período Varguista e pós-Vargas em “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”, livro elaborado a partir dos diários da autora negra e publicado em 1958.
Catadora de papéis, sem estudos escolares avançados, Carolina de Jesus nos dá um panorama de um contexto mais amplo da história do Brasil. Contexto que, tradicionalmente, é visto de forma positiva por ter proporcionado aos migrantes o acesso ao mercado de trabalho. Contudo, Carolina nos faz atentar, com seu livro, para a não realização dessas condições melhores de vida esperadas pelos nordestinos: “o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida” (JESUS, 1963, p. 09). No decorrer de sua obra, a mineira ressalta seu lugar de desprivilegiada no sistema capitalista industrial: “eu não tinha um tostão para comprar pão. Avisei as crianças que não tinha pão. Que tomassem café simples e comesse carne com farinha” (JESUS, 1963, p. 09). Na obra citada, podemos identificar também as condições precárias da saúde pública, principalmente para os “favelados”.
Em relação às mulheres no processo de migração nordestina, Fontes (2004) aponta que as oportunidades de emprego eram mais difíceis para pessoas do gênero feminino. Normalmente a mulher só migrava se acompanhada dos pais ou maridos, o que refletia a ideia de que a mulher deveria ficar cuidando da casa, engravidar e cuidar dos filhos, enquanto o homem saía para trabalhar. A respeito disso, Carolina aponta sua relação com suas vizinhas migrantes:
Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas (JESUS, p.14).
A obra de Carolina de Jesus mostra-se como uma denúncia dos fluxos históricos da época. A autora manifesta aversão à mortalidade infantil e à mortalidade das mulheres durante a gestação e no momento do parto; denuncia os excessos de impostos a pagar; expõe as formas privilegiadas como os imigrantes eram tratados: “fui visitar o filho recém nascido de D. Maria Puerta, uma espanhola de primeira. A jóia da favela. É o ouro no meio de chumbo” (JESUS, 1963); evidencia o papel das igrejas em alimentar (a caridade) a população de baixa renda; mostra que as pessoas pouco escolarizadas (em sua maioria negras) tinham consciência política; entre tantos outros elementos que podem ser interpretados como queixa ao mundo capitalista e industrial. Ao mesmo tempo, em sua narrativa, Carolina se mostra sonhadora, pensando em sair da favela e ir morar em outro lugar mais digno, longe do quarto de despejo, como ela denomina a favela. Carolina vive sempre no limite, sem luxos, sem condições básicas de vida, sem direitos humanos.
Aparentemente a história de Carolina é uma história de migração frustrada; uma mulher que não conseguiu emprego nas indústrias e teve que arranjar uma forma de sustentar seus filhos e ela própria:
Eu não tenho homem em casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo relaxar. O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível” (JESUS, 1963, p. 19).
A autora fala sobre o trabalho em excesso, de se sentir mal com isso; das relações de solidariedade entre os vizinhos. Carolina tinha perfeita consciência do seu lugar de vivência. Sabia que era negra e gostava disso: “é um dia simpático para mim. É o dia da abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos”, “e assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome” (JESUS, 1963, p.27).
Por fim, um elemento que se repete bastante no livro é a fome: “os meninos estão nervosos por não ter o que comer”, “é preciso conhecer a fome para saber descrevê-la” , “o Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora”, “os meus filhos estão sempre com fome”. Inclusive Carolina atribui uma cor à fome: esta cor é amarela. Ao mesmo tempo, o amarelo é a cor da vida, se formos analisar mais a fundo a obra da Carolina de Jesus. Todos os dias a migrante abria a janela, olhava para o céu e lá estava o sol, amarelo, iluminando tudo e a todos. Essa luz, a cada manhã era como uma luz de esperança, de que algum dia tudo iria mudar e que o amarelo da vida iria prevalecer.
Por: Rafael Barbosa de Jesus Santana