Gabriela Almeida Abreu
No segundo capítulo de seu livro O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultura francesa, intitulado “Os trabalhadores se revoltam: O Grande Massacre de Gatos na Rua Saint-Sévein”, o historiador norte-americano Robert Darnton utiliza um documento inicial para trazer a discussão histórica e das mentalidades na França no Antigo Regime. Este documento foi escrito em Paris no ano de 1730 e é uma narrativa do operário Nicolas Contat, que era estagiário em uma tipografia, contando o que aconteceu neste local 20 anos antes.
Resumidamente o capítulo narra a história de dois aprendizes que trabalhavam em uma tipografia, sendo eles o próprio Nicolas, que terá seu nome modificado para Jerome, e seu colega Léveille. O relato inicia tratando da falta de condições dignas que os aprendizes tinham, mostrando que o patrão e sua esposa tinham mais consideração pelos gatos de estimação e que ali viviam do que por eles. Quando chegava à noite estes aprendizes não conseguiam descansar já que todos os dias os gatos se reuniam, realizando o que Nicolas chama de um verdadeiro Sabá, uivando e miando a noite inteira. Para resolver essa situação, Léveille, que era ótimo em imitação, uma noite rasteja pelo telhado dos patrões e começa a miar e uivar repetidamente alto, impedindo o descanso de seu chefe e sua esposa, que no outro dia ordenam que os aprendizes se livrem dos bichanos. É aí que começa o grande massacre de gatos, quando, armados com cabos de vassouras entre outras ferramentas, Jerome e Léveille, partem para cima dos gatos, realizando uma verdadeira chacina.
Esta experiência é destacada como a mais engraçada da carreira do aprendiz Jerome, nos fazendo questionar onde podemos encontrar a graça em um massacre de gatos. Darnton então dirá que “entender a piada do grande massacre de gatos pode possibilitar o ‘entendimento’ de um ingrediente fundamental da cultura artesanal, nos tempos do Antigo Regime” (DARNTON, 2015: 106-107). Podemos chegar a dois pontos para a explicação do ocorrido ter virado uma piada, a primeira é que o massacre dos gatos seria uma forma de ataque indireto ao patrão e a esposa, já que os operários tinham muitas queixas e raiva dos burgueses. Com o relato de Contat percebemos as desigualdades entre o universo dos operários e dos patrões. Mas daí surge o segundo ponto: “porque matar os gatos?” A resposta para essa pergunta pode ser encontrada nos rituais e simbolismos que estavam presentes naquela sociedade.
Estamos familiarizados com os chamados Ciclos Rituais que marcam o “Calendário do Homem” desde o início da Era Moderna; os mais importantes destes ciclos eram o Carnaval (folia) e a Quaresma (onde a ordem se restabelece). Darnton nos mostra que os gatos tinham um papel importante nestes festivais, pois torturar animais, principalmente gatos, além de ser visto como algo divertido, também era uma forma de conseguirem boa sorte, já que os gatos eram tidos como objetos mágicos, feiticeiras e até mesmo agentes do demônio por alguns. Notamos então, que estas torturas eram populares e consideradas normais na sociedade da Europa Moderna. O ato de “julgar” e enforcar os gatos se dá através dessa normalidade em utilizar esses animais para sacrificar, estando dentro de uma tendência cultural daquela sociedade.
O autor elucida que o motivo dos operários massacrarem aqueles gatos teria sido a feitiçaria, já que os operários não conseguiam descansar por causa do Sabá promovido pelos bichanos; aproveitaram-se das crenças e superstições do patrão e da esposa para realizar esse massacre, tornando o julgamento uma encenação onde os gatos representavam os burgueses (com foco no patrão e na esposa) e os operários os juízes, julgando os patrões sem sofrerem retaliação. O que era tão engraçado era o fato de que os operários realizaram o procedimento com tanta habilidade e conhecimento do simbolismo que conseguiram insultar os burgueses sem eles sequer perceberem.
É preciso destacar que só temos uma versão da matança dos gatos, pois a história que o autor utilizou como referência é a narrativa de Nicolas Contat. Não que seja uma narrativa duvidosa, mas essa narrativa deve ser lida e pensada como a versão que Contat dá do acontecimento com a sua tentativa de contar aquela história, mas, assim como Marc Bloch nos alerta no seu livro Apologia da História de que o historiador tem que fazer suas fontes falarem ao invés de simplesmente reproduzir o que elas dizem, é preciso saber interrogar nossas fontes (BLOCH, 2001), e é isso que Robert Darnton faz neste capítulo, investigando o relato de Nicolas Contat para entender as mentalidades humanas daquele período, buscando mostrar as mudanças que ocorreram nessas mentalidades, que hoje em dia já não normalizam mais uma matança de gatos, mas que na Europa Moderna era natural e justificável.
BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. São Paulo: Paz e Terra, 2015
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001