Resenha de: KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras: 2020
Mayara Sousa Souto
Com a pandemia do novo covid-19, a ideia de futuro começou a ser vista de formas muito mais profundas e intensas. Muitas pessoas se agarravam no futuro dizendo que o normal voltaria, enquanto outras afirmavam que precisamos aprender a viver no novo normal, a era digital. Alguns ainda perdiam a esperança com a humanidade, mas sobraram algumas pessoas acreditando que o vírus tinha vindo para ensinar a humanidade a lembrar dos significados de “ser humano”. Mas será mesmo que a natureza se deu o trabalho de ensinar os humanos? Será mesmo que o vírus veio para ensinar algo, ou ele só está seguindo o seu ciclo de vida?
O primeiro caso conhecido de covid-19 foi em dezembro de 2019 na cidade Wuhah, na China. No dia 20 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o surto como “Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional”, e no dia 11 de março de 2020 o coronavírus foi designado como pandemia. Foi então que começamos a nos familiarizar com os números de “infectados”, “recuperados” e “mortos”, também foi quando começamos a ver o mundo parar, os animais tomarem conta das cidades, danças na varanda… A recomendação global era de que todos ficassem em casa.
No Brasil, Ailton Alves Lacerda Krenak deixava suas obrigações fora de sua aldeia e se juntava com sua família, no médio rio Doce. Com mais ou menos um mês de isolamento, publicou o livro Amanhã não está à venda (2020). Uma das lideranças indígenas no país, Krenak é também ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro. Participa de discussões dentro e fora das aldeias, principalmente nas discussões políticas ambientalistas. O livro fala das primeiras impressões do que era o isolamento do coronavírus, e preocupações sobre o cenário político brasileiro.
Isolamento tem significados diferentes para pessoas diferentes, um indivíduo que mora em um pequeno apartamento de uma grande cidade vive o isolamento diferente de Krenak, como o isolamento que eu estou vivenciando em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. As condições de vida, a exposição ou não ao vírus, as grandes possibilidades de ser assassinada pelo estado, a fome (ou a forma mais bonita, insegurança alimentar) afetam os brasileiros de formas totalmente diferentes, mas de forma naturalizada como diz o autor. Aceitamos que uns são sub-humanos que convivem com a grande miséria, estamos vendo isso todos os dias, nos noticiários, se não morre de Covid-19, morre pela necropolítica que é representada pelo governo atual do Brasil. Para Krenak, o vírus é uma forma de o planeta responder as atrocidades que fazemos todos os anos em nome da “civilização”, do “capital”, o planeta entregou a conta de tantos anos de danos.
Desde cedo aprendemos que a humanidade está aparte do planeta, a natureza é selvagem, primitiva; nós somos a humanidade civilizada, superiores:
Fomos, duramente muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade e nos alienamos desse organismo de que somos parte, a Terra, passando a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. (2020, p. 5)
Para o nosso modo de vida atual a exploração é à base de tudo para o benefício humano (ou de alguns humanos). Algo que nos traz péssimas lembranças é o ecocídio que presenciamos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019) e agora com mais de um ano de pandemia temos recordes de mortes em 24 horas que bateram mais de quatro mil mortos.
Quando o autor diz, “Eu não me sinto parte dessa humanidade. Em me sinto excluído dela”, temos um longo debate a se fazer, principalmente no que diz respeito à palavra humanidade, pois, com mais de 510.000 mortos pelo coronavírus nesse último ano e meio, com o atraso na compra das vacinas (e com as suspeitas de corrupção sobre vacinas) o atual presidente ainda se presta a fazer chacotas com um dos sintomas do covid-19 e várias outras demonstrações de irresponsabilidade e de deboche com a vida.
Depois de um ano de pandemia, falar sobre esse livro é bem mais do que um resumo do pensamento do líder indígena, nos faz pensar todos os acontecimentos que ocorreram durante esse tempo, todas as frustrações e falta de esperança que temos (falo aqui como brasileira) alimentado durante esse tempo. O “depois” ainda não chegou, o novo normal é simples, políticos brincando com a vida da população pobre, mas ainda vendemos o amanhã.
Quando iniciei esse texto, em maio de 2021, a frustração estava muito grande, parecia que estava vivendo em um limbo de péssimas notícias, a falta de empatia de algumas centenas de pessoas que acreditavam que tudo estava normal e seguiam em festas clandestinas, tudo fazia com que sentisse que realmente poucas pessoas tinham lido esse livro e pouquíssimas tinham refletido da importância da ação individual para o bem coletivo. Mas um mês depois, ver o país se organizando em manifestações contra o atual governo, reivindicando vacinas e principalmente uma seguridade social com o auxílio emergencial me faz querer pensar em outro amanhã, um amanhã que não estará a venda, um amanhã que está sendo feito no hoje para que existam muito mais hoje e uma possibilidade de que possivelmente, não chegaremos a um milhão de mortos no nosso país.