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Sabina Loriga e “O pequeno x: da biografia à história.”

Daniel Filipe Soares Souza

Em “O pequeno x”, Sabina Loriga trata da mudança da perspectiva historiográfica com relação ao indivíduo, defendendo que os historiadores contemporâneos resistiam a tais noções por as considerarem ultrapassadas e mais próximas de autores do século XIX ou anteriores a isso. Entretanto, para Loriga, por mais que o pensar historiográfico tenha se alterado no tempo, existem métodos e perspectivas históricas que podem ser absorvidas destes historiadores do passado.


O título do livro faz referência à fórmula do historiador alemão Gustav Droysen, A=a+x, sendo A: tudo o que um homem é, possui e faz; a: tudo o que lhe vem das circunstâncias externas, de seu país, de seu povo, de sua época, etc, e x: representa sua contribuição pessoal, a obra de sua livre vontade. O debate teórico sobre a constituição humana, a partir de Droysen (A=a+x), faz uma relação matemática para compreender o ser. Se x é a contribuição pessoal, suas próprias escolhas, o livro discute o indivíduo e de que maneira existe importância nesse debate: o pequeno x, ou o pequeno indivíduo nas discussões e debates acerca da História. Sendo assim, o título da obra deixa explícito o interesse nos indivíduos, seus caminhos e escolhas, pensando nisso surgem diversos questionamentos relacionados à influência individual no curso da história, o que é denominado por Edward Palmer Thompson como agência.


Ao decorrer do texto, Loriga recupera uma série de autores diferentes, entre historiadores e letrados para compreendermos de maneira mais completa o processo dessas mudanças, tendo como principais temas para o debate a biografia, a literatura e a história, três gêneros diferentes, mas que conversam entre si, seja de maneira proposital ou não.


Os interesses biográficos no século XVIII se voltavam aos santos, aos reis, e nas camadas mais populares, aos poetas, soldados ou criminosos, mas nesses estudos o objetivo era compreender e até mesmo enaltecer os indivíduos pelos indivíduos, sem pretensão de discutir a sociedade em que viviam. Ainda que tais elementos estivessem contidos ali de maneira superficial e possam ser utilizados na atualidade como fontes históricas, se pensava em constituir uma vida, uma perspectiva, uma pessoa e não o seu ambiente histórico, mas naquele momento ainda havia certa confusão quanto às diferenças entre esses dois âmbitos. No século XIX, acompanhado do processo consolidação da História enquanto disciplina, os debates e diferenças afloram, o que gerou distinções concretas entre as áreas e a História se torna objeto mais palpável de construção do conhecimento.


Outra discussão que podemos levantar trata dos limites da imaginação, compreendendo que o historiador, o biógrafo e o literato se utilizam dessa ferramenta, de maneiras diferentes tendo o direito ou necessidade e imaginar o passado para construir uma narrativa compreensível ao leitor e amarrar um emaranhado de fontes e informações. O mundo é livre, porém controlado: o biógrafo, assim como o historiador, tem limites de atuação imaginária, um desses limites é a compreensão do tempo e do espaço para não cometer anacronismos ou fugir da “realidade”.


O debate do parágrafo anterior serve para pensarmos a complexidade dos indivíduos do passado –e também do mundo contemporâneo-, pois o que temos acesso na maior parte das vezes está relacionado ao ambiente público, ambiente esse em que os indivíduos no geral têm uma identidade específica, que na maior parte das vezes se mostra diferente do ambiente privado. Podemos concluir que não é possível traçar a vida e o comportamento total de uma pessoa, mas sim das identidades às quais temos acesso. Tais perspectivas tornam possíveis duas relações com outros autores, Stuart Hall, para pensar identidades, e Michel Foucault, para pensarmos as representações e de que maneiras podemos representar algo, que não nós mesmos, em ambientes públicos.


É possível concluir que os processos de alteração na forma de construção e do pensar histórico, não necessariamente tornam as noções anteriores inúteis, ainda existem perspectivas que podem ser absorvidas dos historiadores do passado.

Referências:
LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. 2011.
THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria. Rio: Zahar, 1981

Robert Darnton e o Grande Massacre de Gatos

Gabriela Almeida Abreu

No segundo capítulo de seu livro O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultura francesa, intitulado “Os trabalhadores se revoltam: O Grande Massacre de Gatos na Rua Saint-Sévein”, o historiador norte-americano Robert Darnton utiliza um documento inicial para trazer a discussão histórica e das mentalidades na França no Antigo Regime. Este documento foi escrito em Paris no ano de 1730 e é uma narrativa do operário Nicolas Contat, que era estagiário em uma tipografia, contando o que aconteceu neste local  20 anos antes. 

Resumidamente o capítulo narra a história de dois aprendizes que trabalhavam em uma tipografia, sendo eles o próprio Nicolas, que terá seu nome modificado para Jerome, e seu colega Léveille. O relato inicia  tratando da falta de condições dignas que os aprendizes tinham, mostrando que o patrão e sua esposa tinham mais consideração pelos gatos de estimação e que ali viviam do que por eles. Quando chegava à noite estes aprendizes não conseguiam descansar já que todos os dias os gatos se reuniam, realizando o que Nicolas chama de um verdadeiro Sabá, uivando e miando a noite inteira. Para resolver essa situação, Léveille, que era ótimo em imitação, uma noite rasteja pelo telhado dos patrões e começa a miar e uivar repetidamente alto, impedindo o descanso de seu chefe e sua esposa, que no outro dia ordenam que os aprendizes se livrem dos bichanos. É aí que começa o grande massacre de gatos, quando, armados com cabos de vassouras entre outras ferramentas, Jerome e Léveille, partem para cima dos gatos, realizando uma verdadeira chacina. 

Esta experiência é destacada como a mais engraçada da carreira do aprendiz Jerome, nos fazendo questionar onde podemos encontrar a graça em um massacre de gatos. Darnton  então dirá que “entender a piada do grande massacre de gatos pode possibilitar o ‘entendimento’ de um ingrediente fundamental da cultura artesanal, nos tempos do Antigo Regime” (DARNTON, 2015: 106-107). Podemos chegar a dois pontos para a explicação do ocorrido ter virado uma piada, a primeira é que o massacre dos gatos seria uma forma de ataque indireto ao patrão e a esposa, já que os operários tinham muitas queixas e raiva dos burgueses. Com o relato de Contat percebemos as desigualdades entre o universo dos operários e dos patrões. Mas daí surge o segundo ponto: “porque matar os gatos?” A resposta para essa pergunta pode ser encontrada nos rituais e simbolismos que estavam presentes naquela sociedade. 

Estamos  familiarizados com os chamados Ciclos Rituais que marcam o “Calendário do Homem” desde o início da Era Moderna; os mais importantes destes ciclos eram o Carnaval (folia) e a Quaresma (onde a ordem se restabelece). Darnton  nos mostra que os gatos tinham um papel importante nestes festivais, pois torturar animais, principalmente gatos, além de ser visto como algo divertido, também era uma forma de conseguirem boa sorte, já que os gatos eram tidos como objetos mágicos, feiticeiras e até mesmo agentes do demônio por alguns. Notamos então, que estas torturas eram populares e consideradas normais na sociedade da Europa Moderna. O ato de “julgar” e enforcar os gatos se dá através dessa normalidade em utilizar esses animais para sacrificar, estando dentro de uma tendência cultural daquela sociedade. 

O autor elucida que o motivo  dos operários massacrarem aqueles gatos teria sido a feitiçaria, já que os operários não conseguiam descansar por causa do Sabá promovido pelos bichanos; aproveitaram-se das crenças e superstições do patrão e da esposa para realizar esse massacre, tornando o julgamento uma encenação onde os gatos representavam os burgueses (com foco no patrão e na esposa) e os operários os juízes, julgando os patrões sem sofrerem retaliação. O que era tão engraçado era o fato de que os operários realizaram o procedimento com tanta habilidade e conhecimento do simbolismo que conseguiram insultar os burgueses sem eles sequer perceberem. 

É preciso destacar que só temos uma versão da matança dos gatos, pois a história que o autor utilizou como referência é a narrativa de Nicolas Contat. Não que seja uma narrativa duvidosa, mas essa narrativa deve ser lida e pensada como a versão que Contat dá do acontecimento com a sua tentativa de contar aquela história, mas, assim como Marc Bloch nos alerta no seu livro Apologia da História de que o historiador tem que fazer suas fontes falarem ao invés de simplesmente reproduzir o que elas dizem, é preciso saber interrogar nossas fontes (BLOCH, 2001), e é isso que Robert Darnton faz neste capítulo, investigando o relato de Nicolas Contat para entender as mentalidades humanas daquele período, buscando mostrar as mudanças que ocorreram nessas mentalidades, que hoje em dia já não normalizam mais uma matança de gatos, mas que na Europa Moderna era natural e justificável. 

BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. São Paulo: Paz e Terra, 2015

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001