Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie – Entrevista com Profa. Dra. Priscila Maria Weber (PUC-RS)

Por Rafael Barbosa de Jesus Santana

No mês de agosto de 2018, o Clube do Livro Adamastor teve como centro de suas discussões o romance Hibisco Roxo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Aproveitamos o embalo dos debates e resolvemos realizar uma entrevista sobre o livro, com doutora em História, Priscila Maria Weber.  Confira na íntegra como foi:

1) O que podemos entender sobre o processo de neocolonialismo britânico na Nigéria através do romance Hibisco Roxo?

Sobre o problema das colonizações em África, os processos de descolonizações, bem como os neocolonialismos, é importante entender que todas essas etapas sofrem uma marcação pelos historiadores para simplifica-las ou organiza-las temporalmente, no entanto, estão interligadas. Quero dizer com isso que um acontecimento ocorrido no século XVII, por exemplo, tem ainda amplitude no século XX. Explico: há uma dificuldade/pobreza/enrijecimento muito grande quando se pensa o tempo linearizado, e essas questões só se potencializam caso consideremos que as sociedades africanas possuem princípios de organização e compreensão do mundo que a circunda, para lembrar de Gadamer, que foge completamente ao que costumeiramente um ocidental vai absorver ou refletir sobre determinada experiência.

A memória para as sociedades africanas, via de regra, é algo muito latente nas comunidades, os anciãos muitas vezes guardam histórias, segredos, que são passados através de dezenas de gerações, configurando às tradições um incrível dinamismo, uma incrível vivacidade que hibridiza elementos temporais distintos. Um futuro passado, termo cunhado por Reinhart Koselleck, pode ser um modo interessante e que está ao nosso alcance para pensar as sociedades africanas e seus dinamismos, rupturas e permanências.

Dito isso, eu gostaria que o leitor compreendesse que durante os colonialismos, descolonialismos e neocolonialismos as sociedades africanas nunca estiveram homogêneas. O livro Hibisco Roxo mostra profundamente essas questões. Há em uma mesma família um personagem abastado, Eugene, que é empresário, uma personagem intelectualizada mas que luta para sobreviver, Ifeoma, e ainda um ancião que agoniza, Papa-Nnukwu. Os problemas da Nigéria, para além de problemas locais, são também globais. Suscitam entender particularidades locais, por certo, e então pensamos nas descrições da autora sobre as dores e traumas de uma guerra civil, de um catolicismo na maioria das vezes forçado, de uma democracia frágil, mas vale reparar, que todos esses problemas locais estão perpassados por questões globais. Ao fim e ao cabo, e isso vai culminar em outro romance da autora, ou Americanah, a Nigéria não está isolada, Chimamanda a insere em uma escala global ressaltando o local. Observem a complexidade disso.

É nessa linha que precisamos pensar o neocolonialismo, não em uma relação vertical, de opressores e oprimidos, mas de uma relação que é de extrema horizontalidade: Eugene é um empresário rico, católico ortodoxo, que naturaliza um catolicismo que ele ambiciona puro, mas é sincrético, incorpora elementos africanos. Ifeoma é uma professora universitária que vai para os EUA para fugir da miséria, ela salva a sua pele através das relações que mantém com nigerianos na América do Norte. Papa-Nnukwu convive com todos esses contextos e preserva tradições que ele também ambiciona como puras, mas ao ficar doente aceita ser atendido por médicos, toma medicamentos, faz exames, ou seja, interage com o contexto que está inserido e, por óbvio, se hibridiza. Penso que esse é o principal ganho do livro sobre colonizações, descolonizações e neocolonizações e que não está em descrições literalizadas, muito antes pelo contrário, de forma sutil o livro complexiza esses processos todos e quebra os determinismos das relações verticalizadas que expressam o simplismo do quadro “opressores e oprimidos”.

2) Durante boa parte da obra de Adichie, a violência religiosa sofrida pela sociedade nigeriana fica explícita na própria forma de ser do personagem Eugene. Para você, o que o espírito evangelizador de Eugene pode falar sobre um contexto mais amplo de imposições religiosas na Nigéria?

Sem dúvidas há violências na imposição de um catolicismo forçado na Nigéria, bem como em outros países africanos e, digo ainda, que isso antecede em muito o século XX. No entanto, se o catolicismo foi introduzido e absorvido de modo traumático para alguns, para outros, como a tia Ifeoma, ele era algo que não produzia violências, mas que expressava o que acontece com qualquer cultura quando interage com outra, ou seja, uma troca, uma fusão. Por óbvio, há que se considerar o contexto de exploração capitalista que leva o governo inglês a fomentar as atividades evangelizadoras, no entanto, voltemos a pensar em Eugene e respondo essa pergunta com outra: será mesmo que o catolicismo foi absorvido de forma violenta por todos? Não teria Eugene absorvido o catolicismo ainda na juventude para se aproximar do que ele almejava conquistar, do que ele admirava ou de onde ele almejava se inserir, ou seja, em uma elite local, em relações prósperas de comércio que na altura eram recebidas com mais facilidade por quem assimilasse elementos culturais “brancos”? Alerto para não cairmos na armadilha de encarar a África ou as sociedades africanas como sujeitos passivos, sem arbítrio.

3) Adichie consegue abordar com muita delicadeza uma série de fatores inerentes à história da sociedade nigeriana. A autora trabalha a questão da violência doméstica, da ditadura militar, da qualidade (ou falta dela) educacional, o machismo e as desigualdades sociais. Como você se sentiu ao ler um livro tão sensível e potente? Acredita que, de alguma forma, o romance pode ser utilizado como material didático capaz de suscitar a consciência histórica?

Eu sou absolutamente fã da Chimamanda Ngozi Adiche. Sem dúvida os seus livros podem e devem ser usados como material didático para que se entre em contato com as sociedades africanas de uma forma que acho muito interessante e reveladora, ou pelo olhar de um escritor/historiador/intelectual africano.

4) Por fim, a pergunta que não quer calar. Beatrice queria envenenar seus filhos?

Essa pergunta talvez tenha sido a mais inusitada para mim. Não pensei nessa possibilidade, em nenhum momento. Mas percebi uma mulher nua, não vestindo nada porque seu corpo estava com muitas feridas. Simbolicamente, quero dizer com isso que todos os subterfúgios que temos quando estamos em um estado de “normalidade”, todas as máscaras que usamos para disfarçar dores, traumas, arrependimentos não poderiam ser usados por Beatrice porque seu sofrimento a impedia e, talvez, o envenenamento de Eugene venha nesse sentido: uma tentativa de cicatrização de feridas, um modo de continuar vivendo, uma catarse.

 

Email da entrevistada: priscilamariaweber@gmail.com