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Visões e interpretações de uma mulher negra moçambicana: entrevista com Paulina Chiziane

Por: Rafael Barbosa de Jesus Santana

Convidada para participar do IV Congresso de Pesquisadores/as Negros/as da Região Sul (IV COPENE SUL): Ancestralidades, conquistas e resistências em tempo de intolerância, evento ocorrido entre os dias 16 e 19 de julho de 2019 na Universidade Federal do Pampa/Campus Jaguarão, Paulina Chiziane veio ao Brasil realizar conferência intitulada: “Tradição Oral Moçambicana, Ancestralidades e Resistência Negra”. Sua participação no evento se insere no atual debate sobre a defesa dos avanços sociais e o ataque às conquistas políticas dos movimentos negros nas últimas décadas.

Moçambicana, nascida nos subúrbios da cidade de Maputo, em junho de 1955, Chiziane cresceu num espaço familiar cristão. Sua educação formal foi totalmente realizada em instituições cristãs, nas quais aprendeu a língua portuguesa. Já na vida adulta, lançou alguns contos na década de 1980 e, posteriormente, foi a primeira mulher a publicar um romance; meio pelo qual Chiziane encontrou uma brecha na sociedade machista para discutir questões sociais, como: a prática da poligamia (em Balada de Amor ao Vento [1990] e Niketche: uma história de poligamia [2002]), o colonialismo europeu no cotidiano moçambicano e relações de gênero (mesmas temáticas que foram levantadas nesta entrevista). Também na vida adulta, foi integrante da Frente de Libertação de Moçambique.

Aproveitando sua vinda ao Brasil, buscamos contato com Paulina Chiziane após a realização de sua conferência no dia dezessete (17) de julho de dois mil e dezenove (2019), no Teatro Esperança, localizado na cidade de Jaguarão/Rio Grande do Sul. A entrevista que segue abaixo, concedida gentilmente pela Chiziane, foi realizada na quinta-feira (18.07.2019), na Universidade Federal do Pampa/Campus Jaguarão, às 14 horas, no Restaurante Universitário da instituição.

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Rafael Barbosa de J. Santana: Boa tarde, Paulina. Primeiro quero agradecer pela sua conferência realizada ontem (17.07.2019). Sem dúvida foi bem rica e acrescentou muito para todos/as ouvintes. Introdução feita, vamos à primeira pergunta: na sua conferência você disse que teve formação educacional em instituições cristãs. Nos dias atuais as crianças moçambicanas ainda são formadas neste modelo educacional?

Paulina Chiziane: Exatamente. É muito forte e é muito boa, sem dúvida. Os melhores colégios, as melhores universidades, estão a cargo deles. E, por exemplo, a maior parte dos primeiros dirigentes do país depois da independência, todos tiveram formação, graças à Igreja Católica. Eles continuam fazendo seu trabalho, sobretudo, com apoio aos órfãos e aos idosos. Eles têm um espaço muito forte na sociedade moçambicana.

RBJS: Você lançou seu primeiro livro na década de 1990, sendo a primeira mulher a escrever um romance em Moçambique. A que se deve esse reconhecimento tardio da escrita feminina em sua terra natal?

PC: Primeiro, nós vivíamos no tempo colonial. Tivemos independência em 1975. Durante o período colonial, o acesso ao ensino primeiro foi para os brancos, depois para os mestiços e só finalmente que foi para os negros. Então, temos a independência em 75 e eu já tinha esse gosto pela escrita e tive que vencer várias barreiras: primeiro, por ser mulher, depois por ser negra e, finalmente, só em 90 que aparece o primeiro romance escrito por uma mulher. Por que antes, tivemos brancas a escrever, como foi o caso da Glória de Sant’Anna que é uma branca com duas nacionalidades, portuguesa e moçambicana. Depois apareceu Noémia de Souza que é uma mestiça, foi poetiza. Depois apareceu a Lília Momplé, que é uma mestiça também, que é contista. Depois apareceu a Lina Magaia, cronista. E a primeira negra mulher que aparece a fazer romance sou eu… e não foi fácil. Diziam: “mulher a escrever romance? Que isso?” Então, colocaram todos os nomes possíveis sobre meu trabalho, mas o tempo é mestre. Os brancos, mesmo no período colonial, onde havia muitos brancos, eram a minoria. Então, com a independência, o número de brancos tornou-se menor. Mas sendo um país de maioria negra, com o governo negro… Então, algumas vezes nós nem nos preocupamos com isso, entende? A questão rácica existe sim, mas não é um caso como o vosso.

RBJS: Você disse na conferência que em Moçambique há uma forte tradição oral, colocando que isso não inferioriza os povos moçambicanos, nem pode ser entendido como inferior à cultura escrita. Dito isso, pergunto: o que te impulsiona a escrever romances, a colocar seus pensamentos em palavras?

PC: Olha… não sei. Essa é a verdadeira resposta: não sei. Como ser humano, eu tenho um mundo, que é o social, mas tem o meu mundo interior. O meu mundo interior que às vezes entra em contradição com o mundo exterior. Aquilo que eu sou, no que eu vejo, o que eu gostaria de ter… e às vezes também, o mundo dos outros que interfere no meu mundo… então, esses conflitos quando me ponho a pensar, pego um pedacinho de papel e começo a fazer notas. Essa foi a experiência do meu primeiro livro. Mas também eu não comecei exatamente… não fui direto ao livro. Conhece aquela idade de 13 e 14 anos, quando a gente começa a ouvir uma música romântica, depois começa a despertar para o mundo, para a beleza da vida, etc? Eu já nessa altura tinha o hábito de rabiscar… rabiscar coisas às vezes sem nexos e sem formas, mas foi um hábito que me acompanhou e quando chegou uma certa idade eu disse “NÃO”, posso publicar um livro.

RBJS: Um livro não, vários. Aliás, desconheço esse despertar para o mundo ainda (risos). Brincadeiras à parte, vamos entrar no livro, o Niketche. Neste livro você fala bastante da independência das mulheres, do empoderamento e da sororidade. Como você avalia as atuais discussões feministas em Moçambique?

PC: Essa discussão é muito forte, onde bate muito forte mesmo… temos muitas organizações femininas e feministas, temos um debate muito grande também sobre o empoderamento da mulher e com resultados bons até, pois as mulheres esqueceram do chão e hoje já são alguma coisa. Mas ao mesmo tempo o nosso país veio de uma luta de libertação, tendo um movimento armado que lutava contra o regime colonial português. Nesse movimento estava integrado uma linha feminina que falava da promoção da mulher. Então, não é apenas um discurso social, é um discurso também político que começa com o período da Revolução. Hoje em Moçambique, nós temos uma situação muito privilegiada em relação às mulheres porque já tivemos uma primeira ministra muito competente, como nunca se viu na nossa história. Agora temos uma presidente do parlamento que já está como presidente do parlamento, sinceramente, acho que há 15 anos e ela não sai pois é muito competente. Temos mulheres como governadoras provinciais, ministras etc… e estamos agora a ter um grande número de mulheres que já são empreendedoras, com grandes empresas… então, é um debate, faz parte da nossa agenda cotidiana em Moçambique.

RBJS: Também em Niketche, você escreve sobre o racismo instalado em Moçambique, pontuando a questão do colorismo, sobre os tons de pele, principalmente quando aparece, no romance, o Tony com suas cinco mulheres e uma provável candidata a ser a sexta. Esta, por sua vez, tem a tonalidade da pele mais clara que as outras cinco mulheres, o que a torna uma forte candidata a ser a mais nova esposa de Tony. Podes comentar um pouco sobre esta questão?

PC: A vossa situação brasileira não é muito diferente da situação moçambicana.Vocês tiveram uma repressão portuguesa, nós também. A história do luso-tropicalismo, aquela fantasia que o Gilberto Freire criou, propagou-se muito nas colônias de Portugal, que são agora nosso países. O preconceito… primeiro a hierarquia de raça é uma coisa que ficou muito bem estabelecida: o branco é o supremo, o mulato fica no meio e o negro fica embaixo… teorias de Gilberto Freire. Nós de Moçambique temos duas províncias onde a miscigenação foi muito forte: que é o caso da província da Zambézia, eu acho que mais de 52% da população é mestiça e veio desses cruzamentos das teorias de Gilberto Freire; depois também a província de Nampula, que tem boa parte de pessoas que são mulatas. Então, o nosso país foi construído e é constituído por essas diferentes raças: brancos, mestiços e negros, mas a maioria é negra. Então… essas mulheres ainda vivem o preconceito do passado, dizendo que o mestiço é superior que aos negros. Temos esses problemas, não são muitos, não são visíveis, mas são.

RBJS: Na conferência, como em seu livro Niketche, você pontuou o fato de Moçambique estar nitidamente dividida geograficamente entre práticas culturais da região norte e da região sul do país. De que forma esta divisão se relaciona com aspectos de tradições religiosas de cada região? Como se modelaram essas divisões e como o colonialismo interferiu nesse processo?

PC: Interferiu. Por exemplo: o norte é a região matriarcal e por ser matriarcal não tem poligamia, as mulheres é que dominam e não vão permitir um marido com duas mulheres. Nessa região mesmo veio a interferência do islamismo que traz a poligamia. O sul de Moçambique, que é patriarcal, poligâmico por tradição, teve a influência do cristianismo que é monogâmico. Então fica assim uma confusão. Sem dúvida o sistema colonial interferiu em todos os processos culturais e agora, às vezes, fica muito confuso sem saber exatamente por onde devemos seguir.

RBJS: Em Niketche, você coloca que há diferenças na formação educacional para homens e para mulheres. Outras autoras africanas romancistas/contadoras de histórias também abordam, em contextos diversos do continente africano, essa questão da diferenciação educacional para homens e para mulheres. Qual é a posição estatal em relação à educação?

PC: A instituição pública, a instituição formal e a constituição levam o princípio de igualdade entre os sexos. O nosso país é um dos poucos países em África que define salário igual para trabalho igual, portanto não há salário de mulher, não há salário de homem, existe apenas salário. As universidades agora estão fazendo uma grande campanha para que as mulheres entrem nos cursos que eram considerados masculinos, por exemplo, agora já temos uma faculdade de Engenharia de Petróleo, onde 50% são mulheres. É o próprio Estado que faz essa promoção e hoje as mulheres já entram em profissões que era impensável que fossem ocupadas por mulheres. Mas as instituições tradicionais já diferenciam a formação do homem, aquela formação… secreta não é… é uma formação fechada, onde ensinam o homem a ser homem (não sei o que venha a ser isso) e ensinam as mulheres a serem mulheres. Isso é mais na esfera tradicional. Agora, formal ou não, na mesma sala, mulheres e homens, todos eles aprendem a fazer a mesma profissão e a ganhar o mesmo salário. Nesse aspecto, eu digo que o meu país avançou muito.

RBJS: Como você acredita que o cristianismo e o islamismo lidam com as religiões tradicionais locais moçambicanas?

PC: As duas ignoram, ou melhor, fagocitam as tradições locais. São religiões predadoras, então não permitem a existência de outras. É uma situação quase igual a essa que vocês vivem aqui no Brasil. A expressão africana de religiosidade, desde o tempo colonial, foi sempre relegada ao diabólico. Agora com o surgimento desses neopentecostais que andam espalhados pelo mundo, estamos a viver quase uma situação de uma nova inquisição. Aquilo que vocês passam que estávamos ouvindo na conferência de hoje, da polícia chegar e entrar num terreiro, disparar… que isso? Então, as religiões tradicionais existem e funcionam em lugares escondidos, pois ao público não são aceitos. Por exemplo, a grande força das Igrejas Pentecostais é proveniente do Brasil, injetam veneno no continente africano. Tudo é diabólico, tudo, tudo… só eles que são bons. O status social das pessoas que vão, das pessoas que vão praticar ou dos oficiantes é mal visto, mas as pessoas fazem, e fazem cada vez com mais força. Durante o dia, vão todos pra a Igreja Católica, mas à noite vão ao terreiro. Então, é assim que as coisas são, acho que o Brasil não é muito diferente. Por Constituição, somos um Estado laico, mas o Chefe de Estado de Moçambique não declara abertamente sua religião.

RBJS: O que você acha desse boom de obras literárias africanas que têm chegado cada vez mais ao Ocidente? Por qual motivo você acredita que isso está ocorrendo agora?

PC: Eu acho que isso é semelhante àquilo que eu disse em relação ao surgimento do primeiro romance em Moçambique: primeiro foram os europeus brancos, segundo os mestiços e finalmente os negros. A nível da literatura no mundo, primeiro foi a Europa, depois começa um pouco aparecer a América Latina e finalmente a África tem espaço e explode. Também, cada vez mais, penso que o mundo já reconhece que a África foi silenciada por um longo tempo e há uma necessidade de procurar saber o que pensam os africanos, o que são os africanos.

RBJS: Você teve dificuldades para publicar livros no início de sua carreira devido à falta de editoras em seu país?

PC: Não tinha nada [risos], foi uma luta, só Deus é que sabe como… Primeiro era a falta de papel, depois a instituição que editava era só uma, que era a associação de escritores, depois quando tinha papel não havia energia elétrica, pois era época de guerra civil… ai meu Deus… foi tanta coisa ao mesmo tempo. Por outro lado também, por eu ser mulher, os homens que estavam à frente se assustavam. Então foi muita coisa, mas foi publicado. À partir do segundo livro, eu consigo romper minha fronteira e começo a publicar fora do país. Então, a partir dessa situação, começa a melhorar. Hoje já não enfrentamos mais problemas… os jovens escritores já não enfrentam, pois já há várias editoras, mas os problemas persistem, quer dizer, continuam existindo, mas não com a gravidade inicial.

RBJS: O que há de melhor em Moçambique?

PC: As pessoas.

RBJS: Do que o mundo precisa?

PC: Paz e reconhecer que o planeta Terra é para todos os seres, pessoas e animais, tudo.

RBJS: Muito obrigado pela sua vinda à Jaguarão e tenha um ótimo retorno à Moçambique.

Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie – Entrevista com Profa. Dra. Priscila Maria Weber (PUC-RS)

Por Rafael Barbosa de Jesus Santana

No mês de agosto de 2018, o Clube do Livro Adamastor teve como centro de suas discussões o romance Hibisco Roxo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Aproveitamos o embalo dos debates e resolvemos realizar uma entrevista sobre o livro, com doutora em História, Priscila Maria Weber.  Confira na íntegra como foi:

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