Movimento e ocupação (*)

 

Para entender o fato político que a ação do “Movimento Estudantil Unipampa” criou ao ocupar a Reitoria, é importante pensar algumas camadas do contexto que o envolvem.

Rapidamente, do mais amplo ao mais específico: nossa civilização sofre a globalização e monetarização que ampliam mais e mais a concentração de recursos e reduzem proporcionalmente a qualidade (e muitas vezes a possibilidade) de vida; nosso país foi talhado pela ditadura militar e midiática, submetido ao interesse econômico de corporações transnacionais; nosso sistema educacional é histórica e estruturalmente desvalorizado, e recentemente houve a expansão precária do Ensino Superior; o último ano foi de um levante popular que reivindica e ocupa espaços públicos, que acompanha uma tendência igualmente global, e que foi acompanhado por intolerância e violência de Estado.

Finalmente, vemos a Universidade Federal do Pampa (Unipampa), cuja infra-estrutura sofre de um lado com o mal planejamento na implementação, de outro com a falta de serviços adequados na região, e de outro com a lógica do desmonte de recursos humanos ao longo do percurso. Derivam disso os muitos profissionais desmotivados, a ausência de construções apropriadas, de restaurantes universitários, de moradias para estudantes, de estradas asfaltadas e, muitas vezes, de energia elétrica e água. A própria condição de dez campi com uma única Reitoria é questionável. Somam-se aí alguns discursos demagógicos por parte de alguns dirigentes, e chegamos à descrença e revolta da comunidade acadêmica com relação ao sistema vigente. Não somente estudantes estão descontentes, como também professores e técnicos administrativos; afinal, saímos a pouco tempo da maior greve da história do Ensino Superior no Brasil, de modo que o calendário acadêmico será normalizado somente em dois mil e quinze.

Dentro dessa lógica perversa, as camadas hierárquicas pressionam umas às outras em seqüência: do Governo Federal à Reitoria, passando pela Direção do Campus até os servidores, desembocando nos estudantes, que são simultaneamente o objetivo da existência da instituição de Ensino Superior e a categoria com menos recursos e voz ativa dentro dela. E a corrupção, tida como “traço cultural” dos brasileiros, infesta as fissuras do sistema inteiro: do estudante que copia trabalho da internet, passando pelo servidor que não se importa e procrastina, aos dirigentes que mentem e aplicam mal a verba, até chegar na cúpula dos partidos políticos, que sabemos qual fama possuem.

De tantas mentiras, escândalos e visível descaso, chegamos ao esgotamento do diálogo e da confiança nos dirigentes e na própria lógica do sistema – a famigerada burocracia. Para uns, isso leva à imobilidade, porque não se pode fazer mais coisa alguma. Para outros, traz o movimento, porque então é melhor fazer qualquer coisa. Se perturbar a ordem é errado no sentido de que necessitamos de ordem para viver, é correto no sentido de que a ordem adoecida não nos faz bem.

De qualquer modo, todos concordam em permanecer dentro do sistema, e a ocupação da Reitoria da Unipampa pelo “Movimento Estudantil Unipampa” é tanto uma reação ao esgotamento, quanto um pedido de maior pertinência ao sistema.

Ela se expressa através de cinco pontos de reivindicação: 1) solução para o abastecimento de água no Campus; 2) “reforma” elétrica nos prédios do Campus; 3) abertura imediata do R.U.; 4) manutenção da área externa do Campus; 5) organização de áreas de estudo e convivência aceitáveis.

Chama atenção a ausência de certas distinções: primeiro, entre falhas sob a responsabilidade do Governo Federal, da Reitoria, do Governo Municipal e da Direção do Campus, que são instâncias nem sempre concordantes entre si. E a reivindicação não mostra que problemas crônicos, como a água de péssima qualidade para o consumo nos predios (que está sem solução prevista), são diferentes de problemas em claro processo de resolução, como a obra do R.U. Bagé, a única que tem funcionado perfeitamente desde a inauguração do Campus.

Também não são separadas as conseqüências da gestão pró-têmpore (pré-eleições) e da atual gestão eleita. Não podemos ver diferença entre o que é fruto do trabalho cotidiano de servidores dedicados e a conquista da ocupação da Reitoria: o caso do corte da grama na área externa do Campus, encaminhado na semana anterior à ocupação, tornou-se um “mito de conquista” do movimento. Fica tudo misturado, com entendimento duvidoso, feito brado de descontentamento que demonstra a falta que faz o diálogo. Igualmente duvidoso é o argumento de que esta ação é uma luta que representa toda a comunidade acadêmica em suas necessidades; muitos não consideram legítimo um movimento que não se apresentou previamente à ocupação da Reitoria.

O que eu digo da ocupação? Que o movimento errou e acertou, ao mesmo tempo. Errou em alguns pontos de reivindicação, por falta de entendimento, e errou por não admitir que errou. Acertou por ocupar e por persistir, no erro e no acerto, porque muitos usam o desentendimento como anestesia contra qualquer movimento. E porque desistir ou se omitir é pior ainda.

Infelizmente, a maioria das pessoas observa o fato político criado e “escolhe um lado”, procura assim “se posicionar com firmeza”, ou pelo menos ser coerente com algum discurso. Quando “escolhe um lado”, exclui os “outros lados”, põe-se contra eles. É a lógica da guerra, uns contra os outros.

E a única beneficiária dessa “guerra entre opositores” é exatamente aquela elite estabelecida, distante, que conta com a fragmentação da multidão, a qual se ocupa com “opiniões firmes” em seu movimento.

 

(*) Artigo de opinião originalmente publicado no “Jornal Universitário do Pampa” sobre a ocupação da Reitoria pelo “Movimento Estudantil Unipampa
(http://www.junipampa.info/noticias.php?id=211)

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Reitoria sob ocupação. Foto: Giovani Andreoli
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Reunião com a Direção do Campus Bagé em 20/02, quando a Coordenadora Administrativa Paloma Rosa (ao centro) foi até a Reitoria, à pedido de integrantes do Movimento Estudantil Unipampa, explicar os fluxos do trabalho de pontos de pauta, como a abertura do Restaurante Universitário (que não pode abrir de imediato porque depende do habite-se, da vistoria dos bombeiros e de licitação de empresas) e o corte de grama (no qual foi feita quebra de licitação através do trabalho de servidores do Campus Bagé desde o início de fevereiro). Foto: Giovani Andreoli