De repente a rotina corrida entre trabalho, estudos e casa é totalmente transformada. Crianças acostumadas a ir para escola interagir com os professores e colegas se veem trancadas em casa por causa de um bichinho invisível, o Coronavírus. E agora? O que podemos fazer para tornar o isolamento social mais divertido para nossos filhos? Talvez você não saiba, mas a música pode ser um aliado neste momento e contribuir para o desenvolvimento psicomotor, socioafetivo, cognitivo e linguístico da criança, além de ser uma ferramenta facilitadora da aprendizagem. A musicalização infantil tem como principal foco promover esses espaços e tempos de práticas musicais onde as crianças possam se expressar, comunicar e socializar através de jogos e brincadeiras, utilizando a própria voz, o corpo, os objetos, os instrumentos, entre outros materiais e recursos.
A professora do Curso de Música da Unipampa, Carla Lopardo, é doutora em Música com ênfase em Educação Musical pela Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Didática da Música, pela Universidad Caece (Buenos Aires, Argentina) e Professora de Educação Musical pelo Conservatório Superior de Música Manuel de Falla (Buenos Aires, Argentina) explica que assim como qualquer outra área do conhecimento, a música desenvolve destrezas e habilidades mentais que estão prontas para serem acessadas a partir de processos cognitivos básicos e complexos ao mesmo tempo. “Mas o mais extraordinário do fazer música é que nos conecta como seres sociais que somos, com nossas infinitas possibilidades, podemos ouvir, tocar, cantar, criar, compor com/para o outro e através do outro, num complexo mecanismo de relações, de trocas. Aprendemos a fazer música porque somos parte de um todo, não vivemos isolados (normalmente) e o que escutamos, o que cantamos faz parte das nossas relações e influências, de como vemos e sentimos o mundo através da música. A música nos une, nos congrega e facilita a conexão entre as pessoas. Com as crianças tudo isso se potencializa. Elas absorvem muito rapidamente os processos envolvidos no fazer musical, elas captam os estímulos e os traduzem em movimento, em expressão, em pulsação, em gestos, de forma genuína, espontânea e natural”.
A docente revela que é normal para os pais a tentativa de tentar proteger seus filhos de tudo aquilo que pode ser prejudicial a ele, mas nem sempre isso é possível, mesmo com todo o empenho. Para ela a vida é feita de aprendizagens também nas dificuldades. “Não devemos nos preocupar em esconder, mascarar, evitar falar dessa dor com os pequenos, ao contrário! Eles são capazes de compreender até melhor do que muitos adultos as complexidades do viver, porque simplesmente eles traduzem em ações as emoções, eles conseguem chorar, rir e explodir quando as emoções os transbordam e é justamente esse mecanismo que muitos de nós bloqueamos, escondemos e minimizamos. Então, é fundamental e necessário conversar, explicar às crianças o que está acontecendo, de forma lúdica e simples, para poder responder aos questionamentos deles: ‘por que não posso visitar meus avós?’ ‘por que deixei de ir pra escolinha?’ ‘quantos dias faltam, por que tantos?’”, explica a professora sobre onde a criatividade deve estar presente.
De acordo com Lopardo, uma das formas que podem ajudar a lidar melhor com a realidade é apresentar às crianças canções que falem sobre que abordem assuntos como o medo, o tempo, o corpo e ajudem os pais a entender e refletir junto às crianças sobre estes assuntos. “Neste momento a musicalização, como ferramenta didática, é um instrumento de socialização e sensibilização, ela possibilita desenvolver a expressão e comunicação através da música, por isso, se torna uma prática muito útil para as famílias neste momento em que as emoções nos transbordam. Cantar junto às crianças nos permite conectar, também, com o nosso lado sensível, com a nossa criança interior, com nossos próprios medos e desfazê-los através da expressão da nossa voz”, completa ela.
A professora conta que nas turmas de Musicalização coordenadas por ela, para bebês e crianças, tem organizado grupos de WhatsApp, com a intenção de propiciar o intercâmbio de informações e o melhor tem sido receber os vídeos dos alunos e famílias fazendo as atividades em casa. “Dentre essas trocas, destaco a criação de instrumentos musicais com materiais recicláveis. Além dos instrumentos de sucata, temos famílias que já tem integrantes que tocam algum instrumento e que inclusive gravam o pai ou a mãe tocando e a criança cantando ou que tem brinquedos musicais que podem se transformar em ferramentas excelentes para o desenvolvimento de atividades de musicalização, um xilofone de brinquedo, uma harmônica, um tambor, uma caixa de papelão, um pote de sorvete, uma tampa de panela, enfim, tudo que faça som. E, claro, o nosso primeiro instrumento, o corpo e a voz, são excelentes recursos para fazer música com percussão corporal, batendo palmas, pés e coxas, estalos, sons com a boca, nos oferecem uma infinidade de possibilidades”.
Para os instrumentos de sucata, Carla, destaca que o metal das panelas pode ser usado como pratos de baterias, assim como o plástico do copo de requeijão e potes de tamanhos variados também podem fazer às vezes do instrumento. “A madeira dos gravetos ou da vassoura podemos usar para fazer as clavas ou baquetas para percutir, as tampinhas de garrafa (sejam elas de plástico ou de metal) para fazer nossos chocalhos, as próprias garrafas servem como fontes sonoras para trabalhar timbre, reconhecendo as diferentes sonoridades do arroz, da pipoca, do feijão, do açúcar, das pedras, dos botões sendo sacudidos dentro da garrafa”. A água também pode cumprir essa missão quando colocada dentro de uma garrafa maior, fazendo a criança perceber o som do movimento. “O som pode ser descoberto nos pequenos detalhes, no próprio silêncio, podemos perceber quantos sons aparecem quando a gente fica em silêncio profundo, até sentir o do nosso próprio corpo, as batidas do coração, a respiração, os sons da barriga, o soluço, o bocejo… e ao mesmo tempo perceber o nosso entorno, o som do vento, da chuva, dos pássaros.”
A educadora explica que ainda podem ser construídos instrumentos diferentes para que as crianças possam explorar a sua criatividade com elementos, texturas, cores, tintas, fitas, lixa, papel de diferentes texturas e tamanhos, deixando a imaginação solta. “Isso abre o espaço para que elas criem suas próprias músicas “malucas” ou, no caso dos bebês, possam experimentar o som e a cor nos materiais oferecidos pelas famílias de uma forma lúdica. Macarrão, massa colorida, massinha, fitas, barbante ou cordões de tênis podem ser ótimos recursos para criar nossos brinquedos e acompanhar as brincadeiras com música”.
Materiais didáticos também são uma opção interessante para a proposta, como elásticos, fitas, pedras, gravetos, folhas secas, papeis de diferentes texturas, tecidos, bambolês, bolas e molas, garante a docente. “Podemos inventar jogos com músicas conhecidas e trabalhar a escuta ativa. Por exemplo, escutar uma melodia e se ela tem partes mais rápidas ou mais lentas responder com movimentos se deslocando no espaço a partir desse estímulo sonoro, ou utilizar um objeto para ‘desenhar’ no ar o que a música está transmitindo, ou ainda, marcar o ritmo da canção com um instrumento ou objeto sonoro, mais forte, mais fraco ou com o corpo, batendo palmas, pés e caminhando conforme o andamento de uma determinada música. Os estímulos podem ser variados, desde uma canção infantil, a uma música instrumental, uma melodia tocada por um piano, uma sequência rítmica de bateria ou um rock, uma música eletrônica, tudo pode ser um bom recurso para o desenvolvimento musical da criança”. Nessa brincadeira, Lopardo ensina que com meias velhas, luvas sem par, tampinhas de garrafa PET podem ser confeccionados os personagens de músicas infantis. A luva deixada de lado pode ser os “Cinco ratinhos”, ou, unida a tampinhas de garrafa a “A Aranha Sapateadora”. “A história da serpente” pode ser representada pela meia, sempre com a participação da criança para a confecção.
Lopardo também dá dicas para usar a internet, as plataformas de multimídia e streaming como ferramentas positivas no processo de educação musical e ajudar a combater o tédio durante o isolamento social. “É importante prestar atenção ao tipo de produto que estamos acessando, qual finalidade tem esse produto, quais materiais utiliza, que tipos de aprendizagens posso construir através dele.Diante da variedade de ofertas é importante saber qual de todas é a mais adequada para a faixa etária o quê e como é apresentado, em termos musicais, claro. Conteúdo desenvolvido por grupos ou por educadores musicais como Palavra Cantada, Malamalenga, Mundo Bita, Thiago Di Luca, Música de Brinquedo, Grupo Triii, Barbatuques, Cordel Animado entre muitos outros, podem nos oferecer um mundo de atividades, canções, jogos e brincadeiras para fazer em família. Se desejarem viajar musicalmente alguns quilômetros e ouvir música para a criançada, em línguas hermanas, a dica é Canticuénticos, Caracachumba, Luis Pescetti e tantos outros. Alguns visam o desenvolvimento didático do fazer musical e outros são voltados para o entretenimento através da música, oferecendo diversidade tanto nas propostas musicais quanto no aspecto performático”, apresenta ela.
Dentro de todo o processo, Carla destaca que a capacidade de invenção e reinvenção das crianças não pode ser subestimada, por isso a importância de oferecer materiais para serem explorados e não os industrializados, comprados prontos. “Com isto, estimulamos a expressão criadora que já é natural e espontânea nas crianças, abrindo um mundo de possibilidades. Todas estas práticas fortalecem o vínculo afetivo não somente entre o bebê e seus responsáveis, mas entre todos os componentes da família, seja ela como for constituída. E é este aspecto o que deve ser mais valorizado por todos nós”.
Por Tamíris Centeno Pereira da Rosa – Assessoria de Comunicação Social (ACS)