Nas últimas décadas, tem crescido o interesse acadêmico pela Interdisciplinaridade; muitas vozes ecoam na reivindicação das práticas interdisciplinares na produção de conhecimento e na formação universitária. Associada a um saber relevante para enfrentar os graves problemas sociais e ambientais, fora dos muros acadêmicos, movimentos sociais e organizações não-governamentais defendem a superação de um cenário de fragmentação do conhecimento (a excessiva divisão disciplinar), tendo como pressuposto a necessidade de leituras interdisciplinares dos processos vivenciados nos sistemas físico-químico-biológicos e nos sistemas sócio-histórico-culturais.
Durante o século XX, observou-se uma hiperesespecialização das disciplinas científicas; surgem novas disciplinas, quando o recorte do objeto de estudo reduz o foco dos cientistas em busca da profundidade do conhecimento. Este processo possibilitou grandes conquistas da ciência, dando a ela um poder de influência sobre as ações na vida cotidiana e nas decisões tomadas pelas sociedades. Passa a povoar o imaginário da sociedade ocidental a figura do cientista cada vez mais especializado, de aventais brancos em seus laboratórios bem equipados.
Não seria contraditório então, falarmos em Interdisciplinaridade? Precisa-se compreender o percurso desta perspectiva que emerge com força na produção de conhecimento 1 (principalmente a partir da década de 1960) e na organização dos sistemas de ensino nos países ditos desenvolvidos. Diante de um conhecimento científico cada vez mais complexo, o qual exige uma formação acadêmica para sua compreensão, observa-se a transformação que gera nas formas de relacionamento entre as pessoas e na organização do trabalho, criando um sentimento de apreensão e de insegurança. Surgem criticas aos impactos ambientais percebidos pela artificialização dos espaços urbanos e rurais, atribuindo-se ao desenvolvimento científico-tecnológico um sentido negativo. È neste contexto que surgem discursos em favor da interdisciplinaridade como uma forma de enfrentamento dos grandes problemas sociais e ambientais, fornecendo potência ao conhecimento científico para aproximar-se da vida dos cidadãos e de suas angústias.
Verifica-se que desde os anos 1950, cientistas de várias áreas de conhecimento, epistemólogos e filósofos da ciência passam a defender a interdisciplinaridade, mas esta permanece marginal nas universidades e nos centros de pesquisa 2 ; no entanto, em vários campos profissionais, como nas chamadas ciências ambientais 3 , o trabalho conjunto entre profissionais de várias áreas de conhecimento passa a ser cada vez mais comum e necessário. No mundo da indústria, esta colaboração entre diferentes formações profissionais é cotidiana e muito antiga. Claude Raynaut 4 nos lembra que o esforço realizado para possibilitar as grandes navegações que fizeram os europeus chegarem aos mais diversos recantos do mundo em seu empreendimento colonizador, somente foi possível com a colaboração entre cartógrafos, astrônomos, engenheiros de construção naval, constituindo a “Escola de Sagres”, um empreendimento interdisciplinar.
A Agricultura até o século XIX, quando da fundação das primeiras escolas de agronomia, somente se viabilizava com um conhecimento sobre solos, plantas e condições ambientais, os quais advinham do fazer cotidiano dos agricultores, criando uma “Agri-cultura”; neste conhecimento, esses diferentes elementos interagiam e se influenciavam em seu comportamento; com a evolução da ciência agronômica, os referidos elementos são alocados em diferentes disciplinas, formando-se especialistas em Solos (inclusive, dividindo-se esse tema entre física do solo, fertilidade do solo, microbiologia do solo, conservação de solos, gerando uma formação acadêmica ultraespecializada); especialistas em fisiologia vegetal, fitopatologia, irrigação e tratos culturais em diferentes áreas (fruticultura, Olericultura, Orizicultura, Forrageiras, Soja, Trigo e tantas outras) são formados para aprofundar um conhecimento fundamental aos engenheiros agrônomos. No entanto, ao enfrentar o desafio da produção agrícola, agindo junto aos agricultores, o diálogo entre essas áreas de conhecimento passa a ser necessário; nada mais se trata de esforços multi e interdisciplinares na formação de engenheiros agrônomos.
Mas, se nas áreas técnicas a superação do enfoque disciplinar sempre foi realidade 5 , no meio acadêmico a interdisciplinaridade sempre encontrou dificuldade de se desenvolver. Nas Universidades e Centros de Pesquisa, ainda se percebe a resistência aos trabalhos interdisciplinares, seja devido à formação disciplinar rígida dos pesquisadores e de sua forma de organização em departamentos ou núcleos disciplinares (e na própria formação de grupos de pesquisa e projetos de cooperação internacional). Outros aspectos destacados por Vasconcelos (2016) são a falta de rigor metodológico e uma falta de um tratamento epistemológico adequado, razões pela qual as práticas interdisciplinares são vistas com desconfiança por parte da comunidade científica.
Observa-se no cotidiano acadêmico que as práticas interdisciplinares precisam romper com uma barreira: a dificuldade de comunicação entre pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Para Claude Raynaut, essa dificuldade aumenta quando se busca o diálogo entre o que denomina ciências Humanas (as quais abordam objetos imateriais) e ciências naturais (da materialidade), já que se trata de lógicas diferentes e precisa-se romper com preconceitos de ambos os lados. Neste sentido, visando à formação de espíritos mais abertos a leituras interdisciplinares, surgem os Bacharelados Interdisciplinares no Brasil na década de 1980. Não se trata de formar pessoas com uma formação em diferentes áreas (um saber enciclopédico), mas como melhor habilidade e capacitação para promover o diálogo com diferentes disciplinas científicas.
Outro movimento que fornece um Status acadêmico para a Interdisciplinaridade é a sua inserção no sistema de pós-graduação. Mesmo que desde a década de 1970, a Interdisciplinaridade tenha emergido no Brasil, através de intelectuais que tomaram contato com pesquisadores de centros internacionais, europeus e norte-americanos, permaneceu como marginal na comunidade científica brasileira até anos recentes; somente na virada para o século XXI, a produção de conhecimento interdisciplinar passa a ser reconhecida como importante e estratégica para o sistema de produção de acadêmica com a criação em 1999 da Câmara Interdisciplinar (chamada inicialmente de Comitê Multidisciplinar) pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), vinculada ao Ministério de Educação. Esse reconhecimento de cursos de pós-graduação Interdisciplinares, sejam de mestrado sejam de doutorado, contribuiu para o estímulo e a consolidação de grupos de pesquisa interdisciplinares nas Universidades brasileiras.
O crescente interesse despertado na comunidade acadêmica pela Interdisciplinaridade como perspectiva epistemológica com elevado potencial para a produção de conhecimento pode ser observado pelo significativo crescimento dos programas de pós-graduação interdisciplinares. De 19 programas aprovados pela CAPES em 2001, chega-se a 64 em 2008, ano que apresenta o maior número; continua-se um crescimento intenso até 2015 com 48 cursos aprovados, sendo que a partir daí os critérios de avaliação para aprovação se tornam mais rígidos, causando queda no número de propostas aprovadas, segundo relatório da Câmara Interdisciplinar da CAPES (https://www.capes.gov.br/images/Documento_de_%C3%A1rea_2019/INTERDISCIPLINAR.pdf)
Segundo esse documento, produzido em 2019, atualmente existem 368 programas de pós-graduação interdisciplinares recomendados pela CAPES, envolvendo quatro áreas que compõem a Câmara Interdisciplinar: Meio-Ambiente e Agrárias (47/13%), Sociais e Humanidades (148/40), Engenharia, Tecnologia e Gestão (88/24%), Saúde e Biológicas (85/23%). Esses programas dividem-se em Acadêmicos (voltados à produção de conhecimento sobre temas considerados relevantes pela comunidade científica) e Profissionais (mais recentes, surgem com o objetivo de estreitar a relação entre as universidades e os diferentes segmentos da sociedade, voltando-se à qualificação profissional).
No universo de programas de pós-graduação interdisciplinares, dentre os acadêmicos, encontram-se com somente Mestrado (136/37%), com somente Doutorado (12/3%) e com Mestrado e Doutorado (123/33%); dentre os caracterizados como profissionais encontram-se com somente Mestrado (91/25%), com somente Doutorado (2/1%) e com Mestrado e Doutorado (4/1%).
Esse aumento da busca por uma formação interdisciplinar indicaria a necessidade sentida de abordagens interdisciplinares para a atuação de profissionais em uma “realidade híbrida”, a qual caracterizaria para Claude Raynaut (2014), a sociedade contemporânea. Para esse intelectual Francês, Diretor de Pesquisas no Centro de Pesquisas Científicas da França (CNRS) da Universidade de Bordeaux, a formação interdisciplinar atrai acadêmicos mais abertos à colaboração entre diferentes disciplinas. Ele introduz o conceito de Realidade Híbrida definida como uma grande imbricação entre realidades humanas e materiais, quando espaços cada vez mais antropizados exigem o olhar das Ciências Humanas para conhecer as formas de sociabilidade e exigências socioculturais, fundamentos que os modelam; e, por outro lado, as sociedades humanas são cada vez mais dependentes de suas bases geo-bio-físicas, como se percebe na crise ambiental que ameaça a sustentabilidade planetária.
Os autores que escrevem sobre a interdisciplinaridade costumam salientar que existe uma dificuldade de conceituá-la e que são muitos os entendimentos sobre sua forma de operacionalização 6 ; mas também costumam reforçar que diferentes formas de práticas interdisciplinares são cada vez mais frequentes desde a simples colaboração entre disciplinas diante de uma questão pontual, até a integração permanente entre disciplinas, as interdisciplinas, as quais assumem o caráter de nova área de conhecimento com corpos teóricos e métodos consensualmente aceitos.
Também se deve salientar que em campos de conhecimento que tem assumido grande protagonismo acadêmico, nas chamadas ciências de fronteira, como a Neurofisiologia, a Neuroquímica, Biologia Molecular, Biotecnologia, Engenharia Genética, entre outros, sua formação como área de conhecimento surge a partir de esforços interdisciplinares; estes geraram novos conceitos e métodos, formando nova disciplina. Sem dúvida, tem aumentado cada vez mais interesse pela interdisciplinaridade e pela sua adoção como princípio formativo nos sistemas de ensino superior, processo que ganha mais relevância diante das problemáticas graves que vivenciamos na sociedade contemporânea.
Revisado por Cristina dos Santos Lovato