Por Sara Feitosa .
O romance destaca-se pela “solidez da construção, o equilíbrio da narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras femininas, em sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo num contexto dominado pela sociedade patriarcal”. Foi desse modo que o escritor português Manuel Alegre anunciou, em outubro de 2018, o livro Torto Arado, do brasileiro Itamar Vieira Júnior, como vencedor do Prêmio LeYa de Romance daquele ano.
O Prêmio LeYa de Romance é entregue desde 2008 a autores lusófonos que concorrem anonimamente a € 100 mil (euros) e um contrato de publicação com o Grupo Editorial LeYa. Itamar Vieira Junior é o segundo brasileiro a arrebatar o prêmio. Murilo Carvalho venceu a primeira edição do concurso literário com o romance O rastro do jaguar. O manuscrito vitorioso é escolhido por um júri composto de sete figuras destacadas do mercado editorial lusófono. Em 2018 estavam entre os jurados o editor brasileiro Paulo Werneck, a poeta angolana Ana Paula Tavares e o escritor português Manuel Alegre, vencedor do Prêmio Camões e presidente do júri.
Torto arado, cuja edição brasileira foi publicada pela Todavia, narra a vida dos trabalhadores rurais da fictícia Água Negra, uma fazenda na região da Chapada Diamantina, interior da Bahia. Os trabalhadores de Água Negra não recebem salário para arar a terra, apenas morada, ou melhor, o direito de construir casebres de paredes de barro e telhado de junco (construções de alvenaria são proibidas), e o direito de cultivar roças no quintal, quando não estivessem plantando e colhendo cana-de-açúcar e arroz nas terras do patrão. Só ganham algum dinheiro quando vendem na feira a abóbora, o feijão e a batata que cultivam no quintal ou quando conseguem a aposentadoria rural. Quase todos negros e negras, descendentes dos escravizados libertos. A narrativa de Vieira Júnior não estabelece com precisão em que época a trajetória dos trabalhadores de Água Negra se passa. Pode ser poucas décadas depois da promulgação da Lei áurea, mas pode ser bem mais perto de nossos dias.
O livro é apresentado em três partes. A primeira parte é narrada por Bibiana; a segunda, por sua irmã, Belonísia. As duas são filhas de Zeca Chapéu Grande, um dos trabalhadores de Água Negra e líder do jarê, religião afro-brasileira praticada na região da Chapada Diamantina, influenciada pela umbanda, pelo espiritismo e pelo catolicismo. Além de comandar as “brincadeiras de jarê” e curar corpos doentes e espíritos perturbados, Zeca Chapéu Grande fazia às vezes de líder político para apaziguar os conflitos entre trabalhadores, que acham que a terra é de quem nela trabalha, e os pretensos donos da terra. A terceira e última parte do romance é narrada por uma entidade do jarê.
Itamar Vieira Junior começou a esboçar Torto arado há mais de duas décadas, quando tinha 16 anos, inspirado pela leitura dos romances regionalistas dos anos 30 e 40; dentre os quais, autores como Rachel de Queiroz e José Lins do Rêgo, que retrataram a pobreza sertaneja. “Essa história das duas irmãs que têm uma relação conflituosa uma com a outra, com o pai e com a terra me veio naturalmente. Mas as personagens tinham outros nomes e não tinha essa história da língua”, contou o escritor em entrevista ao programa da TV Cultura “Roda Viva”. Ele datilografou o romance numa Olivetti Lettera 82 que ganhara de presente do pai, mas perdeu o manuscrito, umas 80 páginas, numa mudança. Deixou a literatura um pouco de lado — os pais o alertaram de que era difícil se sustentar da escrita — e se formou em geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Deu aulas e, há 13 anos, ingressou no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde é analista agrário e se divide entre a rotina burocrática da repartição pública e trabalhos de campo no interior do Nordeste. “Quando cheguei ao campo, encontrei a realidade que conheci em romances como O quinze e Menino de engenho”, disse. “Conheci famílias inteiras de trabalhadores que vivem em um sistema semelhante à escravidão, que não recebem dinheiro pelo dia de trabalho e só têm direito à morada. É um Brasil anacrônico, que parou no tempo. Eu quis dividir esse meu espanto, esse choque.”
A vivência de Vieira Junior no campo rendeu uma tese de doutorado em estudos étnicos e africanos, defendida na UFBA em 2017. Em algumas entrevistas, o escritor revelou que achou necessário levar as histórias e os personagens para a literatura. Resolveu, então, escrever sobre essa população, os pobres, quase sempre negros, que pouco aparecem na literatura brasileira recente, principalmente naquela produzida entre Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. “Venho de uma família simples. Meu pai era descendente de indígenas do Recôncavo Baiano. Minha mãe, de camponeses pobres e migrantes. Boa parte de minha família tem ascendência negra. Toda essa história é muito cara para mim, e eu sentia falta dela na literatura”, disse em entrevista. Num trecho de Torto arado, Belonísia justifica sua falta de interesse pela escola porque a professora, Dona Lourdes, “não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos”, “em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz”. Para Vieira Junior, a recente literatura brasileira às vezes se parece com as lições de Dona Lourdes. “Há coisas incríveis na literatura brasileira contemporânea, mas, em minha opinião, também há um excesso de autoficção, de romances girando em torno do umbigo e dos problemas do escritor branco de classe média. Isso cansa. Mas também há autores, menos divulgados, contando histórias que contemplam toda a nossa diversidade, os muitos ‘Brasis’”, afirma Itamar.
Vieira Junior costuma dizer que escreve sobre o que o incomoda. “Tenho uma fé imensa na literatura, porque ela permite uma mudança de papéis. Quando você abre um livro, estabelece um contrato com o autor e os personagens. Durante o tempo daquela leitura, você vai viver um pouco daquelas vidas, o que pode provocar repulsa ou empatia”, comenta. “Escrevo sobre os meus incômodos porque talvez esses incômodos incomodem outras pessoas, para que, nesse jogo de escrita e leitura, nós pensemos um mundo novo, mais humano e capaz de contemplar toda a nossa diversidade.”
Nas várias resenhas e comentários nas mídias sociais e em veículos tradicionais uma referência a Torto Arado parece unânime que este é um novo clássico da literatura brasileira. Questionado sobre essa afirmação na entrevista que concedeu ao programa “Roda Viva”, Itamar foi conclusivo: “Só o tempo dirá!”.
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