Carta aos estudantes

Curitiba, 24 de novembro de 2021.

Só escrevendo outra carta para apresentar a carta que segue abaixo. 

A Coordenação do Curso de Letras a Distância, modalidade Institucional, ofertada pela UNIPAMPA Jaguarão, e as e os discentes de seus 5 polos (Alegrete, Dom Pedrito, Jaguarão, Santana do Livramento, São Borja) promoveram entre 13 e 15 de abril deste ano, em plena pandemia, a I Semana Acadêmica do Curso de Letras EaD. Essa Semana teve como tema “Educação em rede: afeto real em ambiente virtual”. A Semana foi toda online.

Eu estava no meu canto apenas cuidando e atualizando o site do evento e, de repente, a professora Marcela me manda uma mensagem dizendo que não era para eu ficar assim não. Que iria falar numa roda de conversa com o tema “Formação docente e ensino de línguas”. Na verdade, ela me convocou a falar. Eu não tive escolha. E fiquei pensando o que é que eu iria falar? As professoras Ida Maria Morales Martins e Aden Rodrigues Pereira são autoridades no assunto, e eu “ma-le-má” tinha lido um texto do Paulo Freire. 

Sem muito bem saber o que falar, achei que a melhor alternativa talvez fosse eu aplicar o que aprendi lendo a carta aos professores do Paulo Freire. Decidi então escrever uma carta. Uma carta contando da minha experiência, das minhas vivências, dos meus fracassos e sucessos. 

Quando a carta foi lida, a plateia pediu que eu publicasse essa carta no site do curso. Mas depois dessa semana cheia de afetos e reflexões, outros desafios se levantaram. Dentre eles, minha mudança de local de trabalho. Eu já me redistribuíra ao Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, no campus Curitiba. A mudança foi muito grande e só depois que as coisas se estabeleceram um pouco, pude redigir o texto. 

Ao término deste ano, ao qual o CienciAção encerrará um ciclo de trabalhos com pandemia, julguei ser a oportunidade de publicar este escrito. O CienciAção é um projeto ambicioso porque tem lugar para nossas artes. 

Com muita estima,
Walker.

Curitiba, 14 de abril de 2021.

Testemunho de uma experiência.
Carta ao Curso de Letras EaD da Unipampa: O que aprendi?

Queridas e queridos professores!
Meu saudosos e saudosas estudantes!

 

O jeito que encontrei para responder ao chamado de nossa amada professora Marcela, para participar desta Roda de Conversas com o tema “Formação Docente e Ensino de Línguas”, foi escrevendo esta carta. Isso porque este tema me é muito caro; ainda me sinto muito inseguro em tratar dele em público, por causa da minha pouca formação na área pedagógica.

Não sei se todos e todas sabem, mas eu tenho uma graduação em Licenciatura em Letras, mas sim uma graduação em Bacharelado em Linguística; curso que é ofertado pelo Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP. Esse Instituto tinha, à época em que me formei, a graduação em Bacharelado e em Licenciatura em Letras – Português, ofertados não só pelos Departamentos de Linguística Aplicada e de Teoria Literária, como também tinha o curso de Fonoaudiologia ofertado conjuntamente com a Faculdade de Ciências Médicas também da UNICAMP. Perceba então que minha formação não conteve disciplinas literárias, da aplicada ou Educação, muito embora eu tenha estudado disciplinas da Educação quando cursei a graduação em Licenciatura em Matemática na Universidade Federal de São Carlos, a UFSCar. Aliás, na UFSCar, eu cheguei a pesquisar um tanto sobre Educação Matemática porque eu queria ser professor. Nesses estudos, deparei-me com a difícil discussão sobre a relação matemática, currículo e poder, sobre os projetos de dominação que incidiam e incidem na concepção do currículo, sobre o modo distante que esse campo lindo de saber é apresentado e trabalhando nas escolas brasileiras, o que me levou a desistir da licenciatura, isto é, de ser professor nas escolas brasileiras. Estudar Educação Matemática me levou a desistir da Educação e também da Matemática.

Quatorze anos depois, torno-me Professor do Magistério Superior na Fundação Universidade Federal do Pampa, a UNIPAMPA, especificamente para atender o novíssimo curso de Letras – Português a Distância da universidade. Eu já lecionara num curso a distância na Faculdade SENAI de Tecnologia de Jaraguá do Sul (SC), mas era um curso tipo “pacote fechado”, que vinha tudo pronto – inclusive as situações de aprendizagem; cabendo-me realizar, portanto, a tutoria em datas e horários pré-determinados e dar duas aulas presenciais para cumprir os requisitos legais. Na UNIPAMPA a situação foi completamente diferente: estava tudo por se fazer; absolutamente tudo. Havia orientações, mas não havia metodologias, métodos ou técnicas prontas; não havia materiais prontos. Particularmente, não sabia muito o que fazer e escutava o que meus e minhas colegas mais próximos – como Vitor, Camila, Cláudia, Socorro – faziam. 

Logo de cara peguei Estudos Gramaticais I e II, componentes curriculares que objetivam revisar a gramática normativa do português. De cara se impôs esta questão: como ensinar essa gramática nesse curso? E o desafio estava lançado.

Escutei das minhas colegas as maravilhas dos podcasts para evitar muitos encontros síncronos, já que o curso é EaD. E como é e era do meu feitio escrever o meu material – porque assim também estudo -, decidi disponibilizar textos, podcasts e exercícios, os quais gosto que sejam difíceis. Logo vieram as muitas reclamações, críticas e protestos; soube inclusive que uma aluna teve um ataque de nervosismo ao tentar me entender. Fui inclusive acusado de causar evasão – e hoje entendo que, além do fracasso do método, existia o grau de dificuldade de um texto com morfologia e sintaxe muito descritivo. Terminei o ano com forte sentimento de fracasso, de culpa, de solidão e, consequentemente, de muita tristeza. 

As críticas, contudo, não foram em vão, porque meu tom incisivo e duro mascara minha eterna disposição a escutar as e os estudantes; o meu texto não mostra uma pessoa aberta a críticas – por causa de meu estilo de escrever. Mas eu não chegaria, creio, até aqui se eu não fosse uma pessoa aberta a críticas.

Então, em 2018, mudei os métodos. Os e as estudantes não dispensavam meus textos, mas queriam videoaulas. Então preparei caprichosamente videoaulas para explorar o conteúdo, exercícios para avaliá-los e fóruns para questionamentos e outras avaliações. Os ‘ânimos das e dos estudantes ficaram um pouquinho mais alegres, e as reclamações já não eram tão duras e agressivas; mas ainda reclamavam bastante das minhas provas discursivas. Óbvio! Eu aplicava mormente questões objetivas via questionários e fóruns discursivos no decorrer do semestre; mas a avaliação ou prova final, eu fazia questão de que eles e elas escrevessem para mostrar – expor – seus raciocínios, afinal, serão professores e têm que se esforçar em traçar um raciocínio e uma análise gramatical, por mais que o resultado não seja o “correto”. Mas ao redigir a prova final verifiquei que as videoaulas, que eu ficava muitas horas e por vezes dias desenvolvendo, eram pouquíssimas visualizados – talvez por causa do tempo de cada um, afinal não os dividia em vídeos de 20 minutos de duração cada (o que renderia mais boas horas de edição). O resultado foi a reprovação de vários alunos, alunas e alunes que não viram os vídeos e, portanto, não conseguiram responder satisfatoriamente uma prova elaborada com base neles. 

Compreendi então que a videoaula, no nosso caso na UNIPAMPA, era um material com altíssimo custo humano de produção para serem muito pouco visualizados. O que fazer? Eu devia me render aos exercícios objetivos – cujas respostas são facilmente compartilhadas via whats, face ou outro, e a videoaulas? Como garantir um mínimo poder de análise e reflexão linguística? O jeito era fazer encontros síncronos para que a minha palavra tanto escrita quanto falada fosse escutada, e que eu pudesse escutar de imediato as dúvidas e poder assim responder em tempo real – imediato – a cada um deles. E foi o que fiz.

Com isso, em 2019, adotei mconferências regulares – a princípio não gravadas, e depois – a pedido dos e das estudantes – gravadas para explorar o conteúdo; disponibilizei os meus textos, além de disponibilizar outros textos e alguns exercícios objetivos – os quais sempre tive dificuldade de elaborar porque penso que devem ser difíceis –. Ao adotar as mconfes tudo mudou: a alegria tomou conta dos Estudos Gramaticais, alunos, alunas e alunes se aproximaram muito mais de mim porque perderam o medo de mim, e eu percebi que minha “gargalhada fatal” derrubavam as distâncias. Os exercícios continuavam difíceis e com pegadinhas, mas eles, elas e elos não se intimidavam em me questionar, apontar erros, propor soluções e alternativas.

Nessa fase aprendi duas coisas. Uma com a professora Cláudia. No começo, não abria a câmera porque a internet era ruim; mas eu a vi abrindo no início das atividades para dar um “oi” e depois fechava. Comecei a fazer isso para a alegria da galera, até que um dia uma estudante pediu para manter a câmera aberta porque aprendia mais; além de dizer que eu era bonito – claro!!!

Também aprendi que o texto é frio, distante, monológico, com pouca ou nenhuma interação; tal como a videoaula, que os alunos – nem todos – não veem, sobretudo quando o assunto é gramática da nossa língua, terreno onde há ainda muito sofrimento linguístico. O ensino de gramática mesmo que normativo precisa ser mais alegre, dialógico, interativo e discursivo, caso contrário, atinge só as e os iniciados e quem têm grande poder e disposição à leitura de textos técnicos. E outro sentimento: as pessoas querem aprender a gramática normativa, querem aprender a Nomenclatura Gramatical Brasileira e gostam muito de ter tempo para analisar, problematizar e discutir as críticas justas e atuais a esse saber normativo. 

Uma outra descoberta acontece em 2020. No começo dos Estudos Gramaticais II – semestre que teve início tardio por causa da Covid-19 – adotei a mconfe para explorar o conteúdo e exercícios sob a forma de questionários com questões objetivas e discursivas para avaliação. Logo que corrigi o primeiro questionário, recebi críticas de que estava sendo muito rígido na correção, que estavam desanimados… Isso foi debatido bem no início de uma mconfe que foi seguida da brilhante apresentação de um tópico da sintaxe, por um estudante que certamente gosta e domina a gramática. Ao refletir sobre o questionamento, sobre a avaliação e sobre a exposição do colega aos colegas, não tive dúvidas de que precisava mudar tudo e desde já. 

No encontro seguinte, então, rediscutimos todo o Plano de Ensino e sobretudo a avaliação. Propus que ou mantínhamos a estrutura dada ou mudávamos: eu, eles, elas e elos apresentaríamos os conteúdos, dando aulas uns aos outros até o fim do semestre. Assim, a avaliação consistiria numa nota que eles mesmos se dariam, uma nota que o grupo daria à apresentação e uma nota que eu daria. Eles poderiam apresentar sozinhos ou em grupo. Já que se trata de um curso de formação de professores e o importante é saber dar uma de gramática da nossa língua, nada melhor, argumentei, que a avaliação fosse a aula. Eles, elas e elos discutiram que era isso mesmo, que um dia dariam aula, e votaram a favor da proposta desde que a minha nota fosse a de maior peso. Eu também deixaria os questionários a título de exercícios de fixação não avaliativos. Estabelecemos uma agenda, conforme o cronograma; eles se organizaram; deixei o formato de apresentação livre – aula, podcast ou videoaula – e inclui capítulos do livro Emília no país da gramática, de Monteiro Lobato, para termos nosso momento literário em cada mconferência. 

Além das aulas, pedi que cada pessoa ou grupo sempre me apresentasse com antecedência o que fariam; e desde então passamos a nos reunir para discutir os conteúdos, revisar áudios e vídeos, e para realizar leituras dramatizadas. O resultado foi: aulas muito mais dinâmicas, com literatura e dramatização, com bastante gramática normativa e com muitas e muitos perdendo o medo de dar uma aula aos próprios colegas. 

Paulo Freire ([1993] 2001), o patrono da Educação Brasileira, escreveu em sua carta aos professores Ensinar-aprender. Leitura do mundo-leitura da palavra, que “ensinar ensina o ensinante a ensinar” ([1993] 2001, p.259). Ou seja, ensinar e aprender constitui uma relação dialética permanente, se o ato educativo é um ato de amor e de esperança, e não um simples ou “reles” tarefa de ensinar. A linguística contemporânea reconhece em qualquer vertente ou escola que a atitude do linguista é explicativa, não normativa e prescritiva, e que há saberes nos educandos – todos, docentes e discentes – que são reais e potentes, e que devemos construir com os falantes e escreventes os saberes que nos permitem explicar, criar e mudar o mundo.

Então, esta carta é uma homenagem a vocês, meus estudantes, que me tornaram também um educando, porque no ato mesmo de ensinar, ensinaram-me não só a ser melhor professor, estudioso, linguista e, acima de tudo, um amante da linguagem, da vida e das artes. A nossa educação só tem sentido se for para mudar de forma amorosa e esperançosa a nossa realidade.

Um abraço muito efetuoso a todos, todas e todes os professores e aos “vindo sendo” professores – os e as estudantes –, sem os quais não haveria este Curso!!!

Muito agradecido pelos aprendizados, beijos do fundo do meu coração especialmente a equipe BA-FÔ-NI-CA do Curso, e – lembrem-se! – toda carta chega a seu destino, ao transpor distâncias e entregar amor. Como diz o poeta… 

O amor sempre está em um lugar banhado pelos raios de sol.
Ainda que eu não possa ver você,
que não possa tocar você,
te sinto como se estivesse a meu lado.

Afinal, o amor é uma abertura para o outro.

Do seu 
Walker D. Pincerati.

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