Movimento Hip Hop, Cultura de Gangues e Rearticulação Simbólica – Transformando as formas de disputa territorial da juventude de Jaguarão (RS)

por Igor Polatschek,
revisão e edição de Walker Douglas Pincerati.

O ano é 2019, o lugar é Jaguarão (Rio Grande do Sul), centro da cidade, porta de uma conhecida casa noturna local. O clima é tenso! Dois grupos, oriundos de bairros diferentes, marcam posições opostas em meio à multidão: são jovens. Seguramente nenhum deles passa dos trinta (alguns sequer dos dezesseis). Olhares desconfiados e semblantes fechados se agravam entre uma risada e outra. A briga estoura: barulhos de garrafas quebrando, xingamentos, fúria. Meninos batem, meninos apanham. Meninas choram, outras riem. O grupo vencedor sai contando vantagem, rindo, justificando o motivo da briga como justa por conta de uma covardia anterior feita pelos rivais. Os rivais, estes poucos notaram saindo.

É raro encontrar uma noite de fim de semana que não se encaixe na descrição acima. Vez ou outra um disparo ou uma facada deixa o acontecimento menos corriqueiro. Poderíamos também, sem que o parágrafo perca em verdade, mudar o ano: 2017, 2018, 2021?

Outra cena: o ano também é 2019 e o lugar também é Jaguarão, pista de skate, centro da cidade. Uma música agressiva embala uma aglomeração de jovens. Estes se dividem em dois blocos: o primeiro grupo age como o dono do pedaço – chamam uns aos outros aos gritos, riem alto, exibem suas manobras de skate, disputam quem faz mais flexões de braço. O segundo grupo está mais recluso em um canto, se movem de maneira mais contida e parecem atentos ao movimento, são uruguaios, vieram do outro lado da fronteira. Uma roda é formada e um integrante de cada grupo é chamado ao centro. Parecem nervosos, se olham com agressividade. Logo começam a proferir insultos ritmados um contra o outro. A disputa se encerra, os dois oponentes apertam as mãos e voltam cada um para seu grupo.

Essa última cena também não perderia em verdade se trocássemos o ano, o lugar e os personagens por uma vasta gama de opções, pois se refere a uma prática cultural globalizada: as batalhas de rap. Mas o evento específico leva o nome de Faroeste do Sul, e a ocasião narrada corresponde ao dia em que MC Gordão, do Morro Cerro da Pólvora (Jaguarão) venceu a disputa contra o uruguaio MC Warrior (da cidade de Rio Branco), levando os moradores do Cerro, que desceram a ladeira para assistir ao duelo, a comemorarem fervorosamente por se sentirem representados pela vitória de Gordão.

É possível perceber nesse evento vários fatores que remetem a uma cultura de violência: a divisão dos jovens em dois grupos marcados por diferenças de localidade de moradia; a agressividade da música; a troca de insultos; a palavra “Faroeste” no nome do evento – que faz alusão às assustadoras estatísticas da violência no município; o apelido de um dos MC’s que é chamado de Warrior – palavra da língua inglesa que significa “guerreiro”; a vitória de um dos lados do confronto vista como representativa para os habitantes de um território. Entretanto, apesar das inúmeras semelhanças simbólicas com as guerras urbanas contemporâneas – das pancadarias bairristas aos tiroteios entre facções criminosas multimilionárias, passando pelas chamadas tretas de gangues – a expressão do conflito realizada pelas batalhas de rap, ao contrário dessas outras expressões, não resulta em mortos.

As batalhas de rap representam uma das manifestações da cultura Hip Hop. Defendi no meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), baseado no estudo de Martin Lamotte sobre o tema, que o movimento Hip Hop surgiu, dentro de um contexto dominado por violentas disputas territoriais entre gangues, como uma nova forma de disputar territórios. Afrika Bambaataa, líder da gangue Black Spades e considerado um dos pioneiros do Hip Hop, ficou localmente famoso após fazer um acordo de paz entre gangues negras e latinas do South Bronx, região periférica da cidade de Nova Iorque (EUA). As disputas via grafite – na concorrência pela assinatura mais elaborada e no local mais chamativo da cidade, via a dança break – nos desafios entre grupos de dançarinos para ver qual fazia as acrobacias mais difíceis e impressionantes, via batalhas entre DJ’s – na competição pela equipe que teria a maior capacidade de animar o público das festas, e, posteriormente entre MC’s – no duelo entre a capacidade lírica e presença de palco dos oponentes; foram crescentemente endossadas por Bambaataa.

A cultura Hip Hop se constitui a partir desse ponto de vista como um meio alternativo de conquistar espaço, respeito, poder e, posteriormente, dinheiro (objetivos comuns ao universo das gangues) através da arte. Essas formas de arte e, por sua vez, a organização desses grupos de artistas têm uma relação estética de muita semelhança com a cultura de gangues. Vejamos como exemplo a LMK, organização do rap jaguarense criada por CPII, MC local. A sigla significa La Máfia Kennedy: o “La” importado do espanhol nos dá uma pista sobre o contexto local, o sentimento de pertencimento latino, tão esquecido pelos brasileiros, mas que fica mais evidente por causa do intercambio cultural de uma região de fronteira; a palavra “Kennedy” faz referência à Vila Kennedy, bairro do MC criador, trazendo à tona novamente a noção de território, pelo qual o grupo deve lutar e defender; a palavra “Máfia”, por sua vez remete ao modelo mais avançado de organização de grupos criminosos, que diferem de outras organizações da sociedade (além, obviamente, pela ilegalidade de seus negócios), pela alta capacidade adaptativa frente imprevistos e situações de desvantagem.

A lei que a LMK, a Faroeste do Sul e milhares de outras organizações do Hip Hop se esforçam para tentar quebrar é uma lei que não está escrita, mas que é religiosamente praticada. É a lei que impõe às periferias de Jaguarão, do Brasil, da América Latina e de muitos outros lugares do mundo a miséria o encarceramento em massa de suas juventudes (principalmente a negra), e o silêncio perante essa realidade. Os meios que as organizações da cultura Hip Hop se utilizam para tentar burlar essa “lei” são a denúncia dessa realidade pelas letras dos raps e um conjunto de formas de arte que são em si mesmas ao mesmo tempo expressões dos conflitos que impactam as juventudes periféricas e uma alternativa, ainda que simbólica, à esses mesmos conflitos.

Mas saber mais, veja vídeo do MC, escritor e palestrante KRS-ONE (clique aqui), considerado um dos mais proeminentes MC’s da cultura Hip Hop, nascido no Bronx, onde as primeiras festas da cultura tiveram início.

Igor Polatschek é Bacharel em Produção e Política Cultura pela Fundação Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA campus Jaguarão. Defendeu em 2019 o TCC Hip Hop versus Necropolítica, orientado por Walker Douglas Pincerati.