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Fahrenheit, de Ray Bradbury

por Aline Damaris Mota Rienzo Benitez

Residências equipadas com múltiplas telas destinadas ao entretenimento e à interação entre fornecedores de conteúdo e usuários. Diálogos em famílias inexistentes ou superficiais. Relações humanas fragmentadas pelo aparato tecnológico. Aversão à leitura. A criminalização “do porte e da posse de livros”, com a destruição massiva de tão poderosos e perigosos artefatos. Esse é o tema da obra Fahrenheit 451, romance distópico publicado pela primeira vez no ano de 1953.

Duas adaptações foram realizadas para o cinema: uma de 1966, dirigida pelo francês François Truffaut (Reino Unido/França, colorido, 1h52min) – clique aqui para ver o trailer ou clique aqui para saber mais – e a outra adaptação foi lançada em 2018, produzida nos EUA e dirigida por Ramin Bahrani (100min) – clique aqui para ver o trailer.

Ray Bradbury conta em Fahrenheit 451 a história do bombeiro Guy Montag. Guy levava uma vida “normal” até ser confrontado com as ideias e pensamentos de uma jovem “desajustada”, passando inesperadamente a questionar todo o sistema de caça aos livros. Percebeu que o sistema ditava o modo como as pessoas deveriam falar, pensar e agir. Que a determinação de eliminar eles – queimá-los – queria manter essa ordem a todo custo como a verdadeira e a boa para todos. Se a leitura de livros liberta os pensamentos, dever-se-ia então considerá-los altamente perigosos!

Embora seja uma ficção, quase 70 anos depois da sua primeira publicação, conseguimos nele pensar muito na realidade dos nossos dias. A distopia descrita por Bradbury é atual e perturbadora. Pode ser percebida na exposição do indivíduo nas redes sociais e no seu distanciamento cada vez maior à efetiva leitura. As redes, em pouco tempo, assumiram um papel central na vida de muitos, dominando relações, impondo práticas e costumes, aproximando os que estão distantes e distanciando quem está próximo ou próxima.

Creio que quanto mais o ser humano se vê compelido a consumir e a produzir conteúdos digitais para ser visto e se sentir aceito nesse meio, menos ele pensa por si próprio e reflete sobre suas relações com o planeta e o sistema. Acaba por se tornar um produto das redes que tanto cultiva. Nesse ponto, vejo muito da distopia de Fahrenheit 451 hoje: o apagamento da subjetividade, da crítica da verdade e do sujeito.

Aline Damaris Mota Rienzo Benitez é acadêmica do 7° semestre do curso de Letras – EAD/UNIPAMPA. Contato: alinebenitez.aluno@unipampa.edu.br.

Versão do texto em *.pdf: clique aqui.

Revisão e edição de Walker Douglas Pincerati.

2020: o ano do fogo no alagado e outras desgraças

por Eduardo Luís Hettwer Giehl

Há poucos meses li uma reportagem de dezembro de 2019. No título, um astrólogo prometeu que 2020 seria um ano leve. Chegou 2020 e me parece impossível ele ter errado tão rude e tão feio. Ou 2020 está sendo pesado, ou estamos em uma escalada ao pico do monte Everest? Pandemia, fogo para tudo quanto que é lado, ciclone-bomba e até nuvens gigantes de gafanhotos rondando nossos queridos pampas e plantações. Várias coisas que não acontecem toda hora, acontecem agora ao mesmo tempo. Embora o ano dê muito assunto, vou escrever aqui um pouco sobre a “enxurrada de incêndios” e depois vou tratar um pouco sobre de onde vem o balanço que estamos sentido nas bases durante esses dias estranhos que vivemos.

Fogo é tudo igual?

As notícias recentes sobre muitos novos focos de incêndio na Amazônia e no Pantanal são de arrepiar. É muito intrigante ver os dois lugares queimando. A Floresta Amazônica é sempre mostrada com seus rios gigantes e uma floresta úmida, onde chove muito. O Pantanal então, de acordo com o próprio nome, é um grande pântano ou alagado. Claro que nos dois casos a abundância de água tende a ser um pouco menor no inverno, mas ficarem tão secos a ponto de pegar fogo e virarem incêndios incontroláveis é outra história.

O fogo da Amazônia é diferente do fogo do Pantanal, e ambos são diferentes do fogo em outros sistemas – isso pode ser que seja o caso também dos campos de altitude aqui do sul do Brasil, em meu laboratório estamos começando a estudar isso –. No Cerrado, algumas espécies de grama se adaptaram ao fogo. Isso se deu a tal ponto que, durante o inverno, quando é seco, essas gramas são como pólvora: pegam fogo com facilidade e queimam as plantas que ficam acima do solo. Os incêndios acontecem há milhares ou milhões de anos, e, por isso, muitas árvores desenvolveram cascas bem grossas que as protegem do fogo. E o que acontece embaixo do solo é também bem diferente: lá ficam protegidas partes das plantas que não queimam e que garantem um rápido rebrote. No Cerrado, até mesmo os animais também podem estar mais “preparados”, prontos para correr e buscar abrigos quando o fogo chega, e em grande parte parece um “fogo de palha“: queima rápido, mas logo apaga.

Por essas adaptações em plantas e em animais, o Cerrado e alguns outros lugares do mundo são sistemas que queimam com maior facilidade e se recuperam rápido. No entanto, quando o fogo não é parte do sistema, como o que está acontecendo na Amazônia e no Pantanal, o resultado é muito diferente. Quando o fogo não é o natural, é como uma peça que cai dentro de um motor: não se encaixa e atravanca o funcionamento o que causa uma quebra ou colapso do motor inteiro. Quando o fogo chega do jeito que está chegando à Amazônia ou ao Pantanal, onde quase não existem árvores com cascas grossas, plantas com partes protegidas abaixo do solo e prontas para rebrotar, ou animais

que sabem como e para onde fugir, o estrago é incalculável. E por lá, não é só fogo de palha. Quando florestas queimam, a lenha das grandes árvores tende a queimar por muito tempo, e o fogo fica muito mais quente. Por lá é comum que o fogo queime até dentro do solo. Isso mata sementes e animais do solo, que depois não estarão lá para que a floresta volte a crescer.

Logo, por três motivos fogo não é tudo igual. Primeiro, porque o que queima não é igual; segundo, porque o jeito que queima não é igual; e terceiro, porque a rapidez com que cada lugar se recupera não é igual. Por isso, o fogo na Amazônia e no Pantanal precisam ser controlados. O fogo é tão estranho quanto problemático por lá. E levará muito tempo para que os locais queimados se recuperarem.

O que eu, aqui no Sul do Brasil, tenho a ver com isso?

Certamente não foi nenhum de nós que acendeu o fósforo que pôs fogo na Austrália lá pelo início do ano. Dou quase 100% de certeza de que posso dizer o mesmo sobre os incêndios aqui no Brasil. Mas uma questão tem ficado cada vez mais clara: não riscar o fósforo não nos tira toda a culpa, assim como não estar vendo as labaredas pela janela não nos livra de consequências.

Nosso planeta é bem grande para morarmos, porém ainda é uma casa só. Todo mundo sabe bem o que acontece com uma fumaça que começa na cozinha, logo se espalha pela casa toda. Transportando essa ideia para o mundo que vivemos e por meio do que foi descoberto pelos cientistas, a Amazônia é fonte de boa parte das chuvas que caem aqui no sul do Brasil. Isso acontece porque existem milhões de árvores por lá, coletando água nos solos muito úmidos em boa parte do ano.

A água é transportada por dentro das árvores até suas folhas, de onde a maior parte é perdida para o ar, virando um monte de vapor d’água, que, depois, viram nuvens. É tão grande a quantidade de nuvens que se formam por lá que vão sendo empurradas por ventos em nossa direção. Sobra água para abastecer tudo ao longo do caminho, até chegar ao sudeste e sul do Brasil. É tanta água e tão estabelecidos esses caminhos que começaram a ser chamados de “rios voadores”. Quando cortamos ou queimamos as florestas da Amazônia para trocar árvores por lavouras ou pastagens, muito menos água é levada para o ar. Sem as árvores, a Amazônia não produz mais nuvens, os “rios voadores” secam; e logo as plantas de lavouras e hortas aqui no sul e sudeste ficarão murchas. É desse jeito que o prejuízo poderá chegar até nós, a alguns mil quilômetros de distância.

Mas podemos ser acusados de estar ajudando a segurar o fósforo? Nosso mundo está mudando de forma muito rápida, e a forma como aceitamos as mudanças sem fazer nada a respeito é, sim, uma forma de dividir a responsabilidade. Nos últimos anos, especialmente desde 1950, vivemos uma grande aceleração. Tudo está mais rápido de um ano para o outro. Mais pessoas, mais carros, mais lavouras, mais animais em criações, mais indústrias, mais cidades etc. Do outro lado, temos cada vez menos florestas, menos cerrado, menos pantanal, menos animais e menos plantas — fora animais e plantas que nos interessam –. Como resultado, vivemos num mundo muito diferente do mundo de antes de 1950. E junto com essas mudanças, um tanto fáceis de perceber, vem outras bem mais sorrateiras.

Por mais que seguido se escute alguém ou nós mesmos dizendo que cada ano está mais quente, nada é feito a respeito – parece que que nossa memória não é muito boa, não é? Por isso, é bem difícil ter certeza se de fato em 2010 ou 2000 era mais fresco. Ficamos na dúvida e podemos nos convencer de que está tudo bem e que nem mudou tanto assim. Mas os dados de temperatura que foram registrados ao longo desses anos apagam essas dúvidas. Cada ano está mais quente, em média. Isso não impede um dia, uma semana, ou até mês bem frio por ano e até mesmo neve de vez em quando. Tudo isso quer dizer que temos menos dias, menos semanas ou menos meses frios, menos geadas por ano e menos chance de ver neve a cada ano que passa. Ao nos deixarmos enganar pela memória falha e mensagens enganosas de que está tudo bem, estamos oferecendo outro fósforo para acender mais um foguinho.

Para piorar tudo, não está ficando só mais quente. Eu nasci num país que não tinha tornados, num país onde não era tão seco a ponto de um grande alagado pegar fogo, num país que não era tão seco a ponto das cataratas do Iguaçu não rugirem, onde nunca se tinha ouvido falar em ciclone-bomba ou nuvens de gafanhotos sobre os pampas. Esse país era o Brasil. E esse era o mundo logo ali atrás, das décadas de 1980, 1990, 2000. Ao que tudo indica, todo esse caos vem junto com os anos cada vez mais quentes. Esse caos todo é chamado de eventos climáticos extremos: secas mais longas, enxurradas mais fortes, tornados e ciclones-bomba são exemplos. Ouviremos falar cada vez mais disso e das tragédias que virão junto. Em especial porque as previsões de cientistas do mundo todo acertam tanto quanto seus alertas são ignorados: muito e demais.

O que podemos fazer?

A pergunta que resta sobre 2020 é então: foi tudo para contrariar nosso astrólogo desavisado, ou estamos mesmo no caminho errado? Não acho que o universo preste atenção e puna um astrólogo cujas previsões descabidas apareceram num jornal. Ainda mais que estamos pagando a conta juntos. Acredito é que estamos num caminho que não é dos melhores. Enquanto um jornal escreve todos os dias sobre horóscopos, será que escreve o suficiente sobre o mundo a nossa volta e sobre que está acontecendo com ele? Sim, recebemos também enxurradas de informações sobre o fogo na Amazônia e no Pantanal. E na Austrália? E na Califórnia? E na Sibéria? Sim, o mundo está queimando, já sabemos. Mas as ligações nisso tudo não são mostradas de forma clara. Ações para combater, ou melhor ainda, prevenir os problemas que enfrentamos em 2020 são mínimas ou sem sentido. Esforços em frear o desmatamento, diminuir o uso de petróleo ou frear o crescimento da população humana quase não existem. Parece que se resume tudo a se o PIB aumenta, seremos felizes? Sabe-se que o dinheiro circula até mais na tragédia, na desgraça e na guerra. Se aumentar o PIB é nossa única meta, estamos no caminho certo, e a desgraça virá encilhada. Se preferirmos um caminho menos doloroso, precisamos ouvir mais os cientistas e exigir que nossos governos façam o mesmo. E já que 2020 já não pode mais ser “leve”, que seja o ano do recomeço, e que das cinzas dele renasça algum caminho novo.

Eduardo Luís Hettwer Giehl é Professor Adjunto A do Departamento de Ecologia e Zoologia do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: eduardohet@gmail.com.

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