por Mariane Contursi Piffero
O reconhecimento do direito das mulheres ocorreu em etapas, são as chamadas “ondas”. A primeira onda foi na época da Revolução francesa, a segunda durante os movimentos sociais do século XIX, e a terceira, e atual, onda, o feminismo contemporâneo, que surgiu na década de 60. Cada direito alcançado foi importante na conquista dos que vieram depois.
Em 27 de agosto 1962, foi promulgada a Lei n°. 4.121, conhecida como o Estatuto da Mulher Casada. Foi apenas após essa norma que as mulheres passaram a ser consideradas “plenamente capazes” para os atos da vida civil. Até então elas eram consideradas incapazes e subordinadas aos pais ou ao marido, precisando, inclusive, de autorização para trabalhar. Outro marco da terceira onda foi a Lei do Divórcio aprovada em 1977. Após esses avanços, a Constituição Federal declarou, em outubro de 1988, que homens e mulheres são iguais perante a lei.
Contudo, infelizmente a igualdade de gênero, assim como vários outros direitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro, existem apenas no papel. A igualdade inaugurada na Constituição é apenas formal. Ou seja, a igualdade de gênero ainda está apenas no papel. Esse fato faz com que a nossa luta pela igualdade de fato, ou material, seja diária.
A evolução dos direitos das mulheres é um assunto importante, que renderia várias linhas, mas esse não é o tema desse texto. Porém, situar o leitor no tempo para que se perceba que não tem nem 60 anos que as mulheres são consideradas capazes é importante para o tema que será abordado aqui. O assunto hoje é o silenciamento das mulheres como forma de coibir o avanço da efetivação de direitos. As mulheres são emudecidas diariamente e, por vezes, sequer percebem. É normal não identificar, temos que estar atentas para perceber o quanto a sociedade patriarcal ainda quer nos calar.
Essas linhas iniciais são para mostrar que o silenciamento das mulheres é cultural e está em qualquer espaço, dentro dos lares, nas mesas de bar, nas instituições etc. A opressão é uma das maneiras encontradas por aqueles, maioria homens, que pretendem se manter em uma posição de superioridade e acham que manter as mulheres quietas garante esse lugar.
Vivemos em uma sociedade patriarcal. É verdade, estamos mudando, a passos lentos, mas contínuos. Ainda existe uma ideologia que autoriza a desigualdade dos gêneros e que acha “natural” a superioridade do masculino, o que se sabe ser um mito.
A inclusão da mulher no mercado do trabalho foi um passo importante, que proporcionou a nós um lugar para o exercício da cidadania. Rodrigo da Cunha Pereira, no “Dicionário de Direito de Família e Sucessões” afirma que: “a desconstrução da suposta superioridade masculina foi desencadeada principalmente pelo movimento feminista, que está entrelaçado com elementos políticos, religiosos, éticos e estéticos da sociedade”. Ele alerta que as novas possibilidades de relações, tanto pessoais quanto sociais, não são simples, já que vivemos muito tempo com uma cultura onde a desigualdade de gênero era (e ainda é) legítima.
O fato é que mesmo após tanta batalha e modificações da legislação a mulher ainda precisa diariamente buscar que os seus direitos, já reconhecidos, sejam exercidos. Todos, homens e mulheres, precisam estar alertas, pois o silenciamento, é uma das formas de manter o feminino abaixo do masculino. Para exemplificar o comportamento masculino para manter a mulher em uma condição de inferioridade podemos começar falando sobre o silenciamento feminino através do mansplaining e do manterrupting.
O primeiro caso foi descrito por Rebecca Solnit em seu livro “Os homens explicam tudo para mim” onde ela relata que, durante uma conversa com um homem, ele interrompeu sua fala para perguntar se ela já tinha ouvido falar de um livro importante que havia sido lançado e passou a explicar sobre o assunto abordado na obra. Ocorre que a autora do tal livro era a própria Solnit. Ou seja, o homem estava explicando para uma mulher algo que foi escrito por ela.
O manterrupting também ganhou destaque depois da entrevista da deputada estadual Manuela d`Ávila no Roda Viva durante a campanha eleitoral de 2018. Ela sofreu 62 interrupções pelos entrevistadores, enquanto os outros participantes homens, foram cortados em uma escala muito menor (Boulos 12 vezes e Ciro 08). O fato demonstra que não há receio em interromper a fala de uma mulher.
Há relatos que essas e outras condutas são recorrentes fato que acaba desencorajando a fala feminina. As mulheres, por saberem mesmo que inconscientemente, que serão interrompidas, desistem de falar para não passar por essa situação constrangedora. Precisamos mudar essa conduta, não devemos nos intimidar.
O silenciamento das mulheres é uma prática antiga, mas que permanece viva ainda no século XXI. Na obra, do século VIII a.c., Odisséia de Homero, em uma passagem do livro, Telêmaco, filho de Ulisses e Penélope, ao ouvir sua mãe pedir, durante uma reunião de homens em que ele estava tocando um instrumento musical, uma música se dirige a ela e diz: “Mãe, volte para os seus aposentos e retome seu próprio trabalho, o tear e a roca … Discursos são coisas de homem.” Percebam que mesmo escrito há mais de três mil anos a fala parece tão atual.
Notem que colocar a mulher em um espaço inferior ao ocupado pelo homem é uma questão cultural que persiste há muito tempo. A atitude de buscar o rebaixamento de alguém pelo simples fato dessa pessoa não ser do gênero masculino é autorizado pelo sistema patriarcal.
Ocorre que em alguns casos o silenciamento ultrapassa a interrupção ou a explicação anteriormente mencionada. Muitas vezes esse silenciamento pode gerar violação de direitos fundamentais e trazer danos irreversíveis às mulheres silenciadas. É o que acontece nos casos de assédio moral e de violência doméstica, por exemplo. Duas agressões em que a grande maioria das vítimas são mulheres. E um dos motivos dessa estatística é a crença na superioridade masculina somada ao fato de as mulheres acreditarem que realmente são inferiores e, por isso, acabam se calando.
O silêncio pode gerar danos psíquicos (depressão e ansiedade), materiais (pedido de demissão) ou, em casos extremos, causar a morte (feminicídio e suicídio). Precisamos levar a conhecimento de todos, especialmente das vítimas, que a mulher tem o direito de falar e de denunciar. As vítimas não precisam de autorização para falar tão pouco para denunciar crimes. Para a sociedade onde o machismo ainda é dominante, a mudança tem que partir de nós, mulheres
O meu convite é que comecemos uma grande corrente para não permitir o silenciamento das mulheres. No momento que todas nós impusermos nossa voz em todos os espaços nosso lugar em igualdade ao homem será efetivado! Não vamos deixar que nos calem, nem nas mesas dos lares ou dos bares, nem nas instituições e nem em lugar algum. Somos todos iguais e é a nossa voz que vai fazer com que esses direitos saiam do papel e sejam materialmente efetivados.
Mariane Contursi Piffero é advogada – OAB/RS 80.297B – e colunista do CiênciAção. Contato: marianecontursi@hotmail.com.
Referências Bibliográficas
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões: ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015.
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. São Paulo: Cultrix, 2017.
versão do texto em *.pdf: clique aqui
Revisão de Cristina dos Santos Lovato.