A prática da Justiça Restaurativa: resultados de sua implantação em São Borja

A cultura sob a lógica da competitividade, por meio da disputa, tem demonstrado a necessidade de novas formas de convivência. Para tanto, surge uma outra perspectiva denominada de Cultura de Paz, cuja busca e persistência em sua implementação está amparada em organismos e legislações internacionais. E é pelos caminhos da educação, seja ela formal ou não, que se tem a grande esperança de dias melhores, com o exercício diário de convivência sem violência. Para tanto, é necessário garantir educação de qualidade como direito universal dos cidadãos do mundo. É nos espaços formativos, educativos, que encontramos o modo concreto de construção de uma nova cultura pela educação para a paz, que, com princípios e objetivos, manifesta-se em diversas tradições e conceitos.

As origens da Justiça Restaurativa são antigas. Cultural e antropológica, é inspirada nas antigas tradições dos povos nativos do Canadá, da Nova Zelândia, da África do Sul e até mesmo do Brasil. Nelas, o dano gerado à comunidade por alguém era compreendido como um problema de todos. E todos resolviam juntos, objetivando que o equilíbrio dentro da comunidade fosse restaurado e a coesão social fosse mantida, oportunizando à vítima que sua pessoa e sua história de vida não fossem esquecidas. É nessa perspectiva a Justiça Restaurativa surge como alternativa à Justiça Retributiva para novas formas de resolução de conflitos. Quer solucionar conflitos de menor ou maior potencial ofensivo via diálogo e mediação entre as partes para restaurar danos, e, principalmente, quer restabelecer as relações continuadas entre os sujeitos envolvidos. Para isso, conta com a colaboração e o envolvimento de toda a comunidade.

Os primeiros estudos sobre Justiça Restaurativa no Brasil foram realizados por iniciativa do jurista brasileiro Pedro Scuro Neto, em 1999, no Rio Grande do Sul. Com a criação da Resolução 2002/12, de 24 de julho de 2012, do Conselho Econômico e Social da ONU, a Organização das Nações Unidas, os estudos de Scuro Neto são levados ao Conselho Nacional de Justifica que, com o apoio financeiro do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o PNUD, órgão da ONU, dará início a três projetos pilotos. Os três projetos pilotos são desenvolvidos em três cidades: (a) Porto Alegre/RS, direcionado à infância e juventude; (b) São Caetano do Sul/SP, também direcionado à infância e juventude; e (c) Brasília/DF, no Juizado Especial Criminal (ver LARA, 2013). As primeiras práticas restaurativas aconteceram em Porto Alegre, no ano de 2002, na 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude. Foi a experiência que mais se desenvolveu e, como consequência, criou o protocolo de cooperação através do projeto “Justiça para o Século 21: Instituindo Práticas Restaurativas”, tendo como grande protagonista Leoberto Brancher, Juiz de Direito.

Uma abordagem é restaurativa quando os meios usados na resolução de um conflito ou infração são pautados na responsabilidade, no encontro, no diálogo, na reparação do dano, na horizontalidade e na coesão. A união do paradigma teórico e a prática se dá concretamente nas práticas restaurativas, porque oportuniza a mudança de pontos de vista dos envolvidos e transforma as pessoas e os relacionamentos. Os encontros são organizados por pessoas treinadas, para que os participantes tenham voz. Nesses encontros, as vítimas, inclusive indiretas, e o ofensor concordam em se encontrar frente a frente e falar de seus sentimentos, afim de resgatar as relações perdidas e evitar a reincidência. O objetivo do enfoque restaurativo é o de desenvolver a capacidade das pessoas de se transformarem mediante suas reais condições, seja de vítima, de ofensor, de cidadão ou de membro de uma instituição. 

Os encontros são denominados de “círculos de construção de paz”, dado que os processos circulares se apresentam nos dias atuais como alternativas concretas na mediação de conflitos, sob o prisma teórico e prático da comunicação não violenta. Nessa perspectiva, de caráter ancestral, as pessoas se reúnem em círculo e usam um objeto chamado “bastão de fala”. Esse bastão é passado de pessoa a pessoa. E quem estiver com ele é o detentor da palavra, enquanto as outras pessoas fazem uma escuta ativa. Esse processo ancestral constitui um espaço democrático e inclusivo, ao mesmo tempo em que institui a resolução de conflitos por meio do fortalecimento de vínculos e reparação dos danos. Portanto, o círculo de construção de paz é um processo para se construir e reconstruir relacionamentos com base na confiança e no cuidado das relações de afeto.

O Município de São Borja/RS foi contemplado com a institucionalização do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania/CEJUSC, em 2016, mediante à implantação dos métodos autocompositivos de Mediação Judicial, Conciliação Judicial e Justiça Restaurativa, a partir do protocolo de Cooperação entre instituições públicas e privadas de São Borja. Isso oportunizou a formação de facilitadores judiciais em justiça restaurativa. Após a formação, os facilitadores judiciais se inseriram em áreas estratégicas de atuação. Nosso foco de análise se restringiu à área da educação com a participação ativa e efetiva de 4 escolas e gestores municipais e estaduais da área da educação pública. A escola é um espaço onde crianças e adolescentes apreendem e exercitam suas experiências de vida. Nesse sentido, é em sala de aula que ocorre a descarga de suas frustrações, suas expectativas, atitudes tanto positivas quanto negativas, pois nesse ambiente estão outros sujeitos, com experiências parecidas ou totalmente diferentes das suas.

É nesse contexto tão importante que apresentamos como resultado a formação de 240 profissionais das quatro escolas que compuseram a experiência piloto, que se materializou através de 8 oficinas de formação, duas em cada escola. Posteriormente, ocorreu a realização de 38 círculos de construção de paz, atendendo profissionais de todas as áreas que compõem os recursos humanos das escolas e gestores das secretarias Municipal e Estadual de Educação (35ª Coordenadoria).

Um dado muito importante refere-se à interdisciplinaridade, pois todo o processo de planejamento e execução dos círculos foi feito em equipe interdisciplinar. A interdisciplinaridade foi e é um elemento fundamental na qualidade das ações. O projeto proporcionou aproximações de diversas áreas do saber, possibilitando de forma concreta ações pedagógicas efetivas nos processos circulares. Os dados apontam que a visão de educação dos professores e demais profissionais vai ao encontro da concepção da educação para a paz, ou seja: o formar para além de profissionais, cidadãos críticos e defensores dos ideais de paz, é realizado através dos esforços para que essa educação seja inovada, transformada e democratizada. É inegável a contribuição do processo circular para promover sentimentos de pertencimento e desenvolver a participação democrática entre as pessoas, cultivando a consciência coletiva, em consideração com todos, a partir de suas dificuldades de potencialidades.

Indicações de Leitura:
BRANCHER, Leoberto. Programa Justiça Restaurativa para O Século 21 – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. AMB, 2015.
JACCOUD, Mylène.
Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. Justiça Restaurativa (Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD). Brasília, 2005.
LARA, Caio Augusto Souza.
Dez anos de práticas Restaurativas no Brasil: a Afirmação da Justiça Restaurativa como Política Pública de Resolução de Conflitos e Acesso à Justiça. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, 2013.
PRANIS, Kay.
Processos circulares. SP: Palas Athena, 2010.
PRANIS, kay, WATSON, Carolyn Boyes. Círculos em Movimento: Construindo uma Comunidade Escolar Restaurativa. Tradução: BASTIAN, Fátima de. AJURIS: Porto Alegre, 2015.
ZEHR, Howard.
Trocando as lentes – Um Novo Foco Sobre o Crime e a Justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.


Simone Barros de Oliveira é Doutora em Serviço Social e docente da Universidade Federal do Pampa, atuando no Curso de Serviço Social, campus São Borja. É vice-líder do grupo de pesquisa “Educação Direitos Humanos e Fronteira” e coordenadora do projeto de pesquisa “Cultura de Paz e Justiça Restaurativa em São Borja: Implantação e Monitoramento”.

Revisão e edição de Walker Douglas Pincerati