Carta em resposta à Carta de Paulo Freire aos Professores (1993 [2001])

Jaguarão, 15 de outubro de 2020.

Talvez, como muitas outras pessoas, eu não conheço a obra de Paulo Freire e por isso não me atrevo a falar sobre ela. Qualquer opinião nesse sentido seria um preconceito. E como não gosto de ser preconceituoso, procuro – muitas vezes sem sucesso – não falar sobre aquilo que não sei. E por isso não falava de Paulo Freire. No entanto, um dia uma conversa me deixou curioso porque soube, por uma amiga, que, no fim da sua obra, ele apostou na carta como um poderoso instrumento de práticas de leitura e escrita para todos nós. Vou então, a partir de agora, contar brevemente uma experiência de leituras causada pela leitura da Carta do Paulo. Após ler a carta dele, não tive como não escrever esta, que agora você lê. Em sua leitura, clique nas imagens e nos links para acessar os textos, os vídeos (mais essencialmente) e outras informações. Espero que goste desta carta!

Confesso que eu nunca tinha parado para ler e terminar de ler um texto de Paulo Freire. Eu, obviamente, havia escutado falar muito dele, de sua Pedagogia do Oprimido e da Pedagogia da Esperança; mas nunca consegui lê-lo. Lembro-me que até tentei uma vez ler…, acho que a Pedagogia do Oprimido durante minha graduação em Linguística na UNICAMP. Mas parei. Creio eu que parei porque seu texto é bem diferente dos textos que estava acostumado a ler, impregnados pela metodologia do texto científico e universitário. Por isso, não suportei – se sou fiel ao que senti – à leitura à época.

A leitura da Carta me veio de uma forma desviada – o que me faz lembrar da frase que diz que “toda carta chega a seu destino”. No dia em que assinei o contrato de união estável, a e os testemunhas jantamos no Sinuelo, um restaurante bem bom de Jaguarão/RS. Sentei-me ao lado da Ana Cristina da Silva Rodrigues e ela me contou do projeto e grupo de estudos que está levando a cabo sobre “as cartas pedagógicas” e que trabalhar com essas cartas têm feito com que suas orientandas se sintam mais soltas para escrever. Comentei com ela que achava isso muito interessante porque – lembrei-me – em minha adolescência eu escrevi muitas cartas. Eu me correspondia via “carta social” com pessoas do Brasil inteiro. Era uma alegria ver o carteiro chegar com aquele pacote grande cheio de cartas. E que, pensando hoje nisso, isso foi super importante para mim e para minha formação. Lamentei que as cartas que envio hoje não são mais respondidas, que as pessoas não sentam e param para escrever cartas!! Também comentei – se me recordo bem – o quanto Freud, o pai da Psicanálise, escrevia e trocava correspondências com várias pessoas e intelectuais; algumas delas muito famosas, como a famosa troca de cartas entre Albert Einstein e Freud, publicadas sob o título: Por que a Guerra? Einstein escreve pro Freud perguntando por que acontece a guerra? E Freud responde… texto disponível aqui (entre as páginas 21 e 47.) Eu disse para Ana que, a meu ver, a Psicanálise foi edificada nas cartas. Ela então me convidou para conhecer o grupo das cartas pedagógicas e participar de uma reunião. Combinamos isso e ela ficou de me mandar uma carta de Paulo Freire e umas cartas de suas alunas. Nada de preparação, mas sim uma conversa livre. Dias depois recebi pelo whats algumas cartas de três alunas e a Carta de Paulo Freire aos professores, publicada em 1993 e republicada em 2001, chamada Ensinar, aprender: leitura do mundo, leitura da palavra. Você pode ler a carta clicando aqui. Ela também é encontrada no livro do Paulo Freire: Professora, sim; tia, não – Cartas a quem ousa ensinar.

Antes de participar da reunião e após ter lido a carta, assisti novamente a dois filmes de uma série do Netflix que eu gosto muito porque me emociono muito. Violet Evergarden Especial e, depois Violet Evergarden Gaiden, sendo que este eu não sabia que já estava disponível. Se você gosta de anime ou não se irrita de ver um desenho, vale a pena assistir este pequeno trecho do Especial, momento em que uma carta de Violeta – uma jovem que fora treinada para ser uma arma de guerra, perdeu seu amor e suas mãos na guerra e se tornou uma Boneca de Automemória, uma escritora-fantasma, profissional que escreve carta para seus clientes. A carta é lida e cantada num musical. Vale a pena ver o trecho:

Violet Evergarden é uma série japonesa adaptada para anime, originada de uma série de light novel (novela ou romance rápido) japonesa, escrita por Kanan Akatsuki e ilustrada por Akiko Takase. O filme Gaiden dessa série, o último que saiu no Netflix, caiu como uma luva depois de ler a carta do Paulo Freire como uma carta pra mim, um professor.

O filme começa com uma criança num navio com uma carta na mão…

Na primeira parte da história, a pedido da Família Real, Violeta vai trabalhar como  professora de cultura, conversação, etiqueta e dança da jovem Isabella York. Isabella é uma jovem que se sente aprisionada e solitária numa instituição destinada exclusivamente e integralmente à criação das meninas das boas famílias, suas criadas e professores. Uma escola de meninas separadas do mundo por muros altos. Todas as meninas vêm de famílias respeitáveis ou se casarão com alguém respeitável. Após alguns dias de convivência, Isabella pergunta para Violeta que tipos de cartas já escreveu. Violeta responde dizendo que “cartas permitem você expressar o que normalmente não pode dizer” – pela beleza, vale a pena ver o trecho:

Comprido o propósito, Violeta se despede de Isabella. Na despedida, Isabella disse que sente muitas saudades de Taylor, sua irmãzinha com quem convivera quando era uma mendiga e se chamava Amy. Violeta se oferece para escrever uma carta da Isabella para Taylor e repete seu maior ensinamento: uma carta lhe permite expressar seus sentimentos. Veja o trecho:

A segunda parte da história começa com Taylor chegando na empresa que a Violeta trabalha. Toda contente, afirma que quer ser uma entregadora de cartas, um carteiro. Depois de um dia de trabalho, em que Violeta sai pela cidade para entrega cartas com ela, ao mesmo tempo em que a ensina ler e escrever, Violeta pergunta para Taylor porque ela quer ser um carteiro? A graciosa garotinha conta que quando era pequenininha, seu “professor” – o carteiro da empresa – chegou e entregou uma carta de sua irmã para ela. Que isso fez com que ela se lembrasse dos momentos felizes que viveu com ela. Ele deu isto para ela: entregou para ela a felicidade. “Também quero entregar felicidade!”, disse então Taylor. Violeta pede para ajudar Taylor a escrever uma carta para sua irmã, expressando o que sente. Elas passam a noite escrevendo e precisam que a carta chegue a seu destino, o que é um grande desafio. Então, pedem isso ao carteiro, o professor de Taylor, que responde que “toda carta deve chegar a seu destino”. Eis as duas partes em que isso acontece:

Escrever cartas permite expressar aquilo que não podemos dizer, permitem expressar os sentimentos. E entregar cartas é entregar felicidade. Sempre há um difícil ato de doação nisso, uma doação que implica em transformação sem esperar recebe algo imediato em troca. Porém, algo que se dá na troca, e assim toda carta chega a se destino…

Ler a Carta de Paulo Freire me despertou um sentimento de descoberta e de satisfação com o modo mesmo que ele escreve, tudo junto. Pois ele “teoriza” sem precisar de muita referenciação sobre o ato de ensinar e aprender como um ato duplo: ensinar é aprender. Mais ainda, que “ensinar ensina o ensinante a ensinar”, considerando que o professor é sempre um aprendiz: ele tem que sempre estudar! É então que passa a discorrer sobre o estudo, sobre a posição crítica no ato de estudar enquanto ato de ler e de escrever; e que na prática de tais atos necessitamos usar os instrumentos pedagógicos e linguísticos disponíveis: os dicionários, as enciclopédias, outros textos, etc. “Estudar é desocultar, é ganhar a compreensão mais exata do objeto, é perceber sua relação com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do estudo, se arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria.” (p.264.)

Ele escreve isso após discorrer sobre a experiência em Porto Mont. Experiência em que determinados conceitos-chave só seriam discutidos na prática em que as pessoas ali presentes se engajavam. Isso fez com que a “leitura” que as pessoas daquele lugar faziam de seu próprio lugar mudasse a partir de um “distanciamento crítico”. Além da “leitura do mundo”, passaram ao nível de uma “leitura do mundo” pela “leitura da palavra”. O exercício com a palavra pela palavra transformou a visão que tinham do próprio lugar. É a questão, a posição crítica do ato de estudar como prática inerente à profissão do professor que provoca a reflexão, a leitura e a escrita como “processos que não se podem separar.” Essa separação é um equívoco, e, neste ponto lembro da Taylor com Violeta: aprendeu a ler na rua porque queria entregar cartas e aprendeu a escrever para escrever cartas.

Paulo Freire entende que se desde a pré-escola essa prática dupla “ler e escrever” acontecesse, não haveria pós-graduandos dizendo hoje que não sabem escrever (p.266). E então avança numa proposta de considerarmos o corpo como um “vir sendo”, e não como um “vir a ser” e sempre sendo infante: ‘que não fala’, ‘incapaz de falar’, ‘criança’. Ou seja, não tratar as crianças e os outros em geral como infantes, falados, tomar-lhes a palavra; e não os tratar como falantes, recusando em dar-lhes a palavra. O falante, leitor e “escritor”, é então entendido enquanto corpo que se apropria criticamente de “sua forma de vir sendo” que faz parte de sua natureza, constituindo-se histórica e socialmente. O uso do gerúndio por Paulo marca o processo, não seu fim. Portanto, é uma escrita que faz questão de mostrar que somos seres de linguagem, que nossa percepção, nosso corpo se transforma à medida que falamos, lemos e escrevemos; e, em suma, estudamos.

Me surpreendeu em tudo isso a relação oralidade e escrita, quando diz que, embora a oralidade preceda a escrita, ela “a traz em si desde o primeiro momento em que os seres humanos se tornaram socialmente capazes de ir exprimindo-se através de símbolos que diziam algo de seus sonhos, de seus medos, de sua experiência social, de suas esperanças, de suas práticas.” (p.266.) Ou seja, um ponto de vista que entende a escrita como simbolização gráfica da experiência e como construtora mesma desta experiência.

Termino por dizer que eu gosto disso tudo, mas que também me é difícil pensar nisso tudo. Nós, como professores, temos medo de parecermos burros, de errar, de não saber e de reconhecer isso e nos doar. Justifique-se o que se queira justificar! Mas é somente no ato de se doar que nossa profissão faz sentido, dá esperança e nos move a sempre mais buscar. Se escrever uma carta é também se doar, posso talvez dizer que professar é também amar.

Walker Douglas Pincerati

Sou professor na Licenciatura em Letras a Distância na UNIPAMPA, imortal correspondente da ALBSC e membro do grupo de pesquisa Leciber: Letras e Educação na Cibercultura (UNIPAMPA Jaguarão) e do centro de pesquisas outrArte: psicanálise entre ciência e arte (IEL/UNICAMP). Contato: clique aqui. Página web: http://cursos.unipampa.edu.br/cursos/llpead/walker-d-pincerati/.

Agradecimentos especiais ao Clito Lagoeiro, meu grande amigo que me ajudou na edição e disponibilização dos vídeos. Os créditos das cenas recordadas devem ser atribuídos inteiramente aos produtores do filme Violet Evergarden Gaiden, dirigido por Haruka Fujita (2019, 1h30, HD, 5.1).

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