Uma tal cartilha reescrita

Por Cátia Machado Moraes

Conto baseado em fatos muito reais e inspirado no Poema de Conceição Evaristo, Vozes Mulheres.

Eis o podcast da próprio autora lendo seu próprio conto, ao som de passarinhos:

O aroma do café recém passado toma conta do ambiente. Eva, absorta em seus pensamentos, observa suas filhas reunidas junto à mesa, orgulhosa de ver todas criadas, donas de seus destinos. Ela recorda o quão difícil fora sua trajetória até aquele momento. Criada em casas de estranhos, desde menina, Eva trabalhava feito adulta: escola, só frequentou até aprender a ler, depois ficara órfã e o trabalho foi o caminho para a sobrevivência.

Menina, preta, pobre, o que a vida destinaria a ela??? 

Somente seus sonhos a mantinham viva. Aprendera, desde cedo, que não teria vez. Sua existência seria para servir aos patrões, calada, sem direitos, trabalho em troca de comida. Tentando fugir dessa vida árdua, casou cedo, afinal, apaixonada, imaginava que a felicidade, enfim, chegaria. Ledo engano: vieram, sim, mais desilusões, o marido nem de longe era o príncipe de seus sonhos. Eva teve seis filhas e ainda tinha que trabalhar para alimentá-las. Muitas vezes deixava de comer para que não faltasse comida às filhas.

Ela acostumava-se à sua sina, afinal, aprendera a obedecer, a se calar, sobrevivia… Porém, suas filhas, essas ela fazia questão que estudassem. Não queria que elas seguissem sua sina. Contava-lhes histórias lindas de mulheres negras como elas que foram rainhas, guerreiras. Eva ensinava suas meninas que deveriam buscar sua liberdade, que, por meio do estudo, elas poderiam ser o que desejassem, sobretudo, donas de si. E, assim, lutara para manter suas meninas na escola. Mesmo mal sabendo ler, Eva valorizava muito a educação escolar.

E hoje ela enfim conhece a tal da felicidade, duas de suas filhas estão se preparando para a formatura. A menina mais velha e a filha caçula se tornarão professoras, enfim a liberdade! Elas terão o poder de fala! Suas vozes ecoarão! Serão referência para outras meninas pretas. Elas, que tantas vezes escutaram que “filho de pobre, preto, não dá em nada, ou se tornam bandidos ou ‘mulher à toa’.” Suas meninas contrariam as previsões ruins, e Eva sente que sua luta valeu a pena.

Ela sorve lentamente o café que hoje tem sabor de vitória, enquanto deixa escapar uma lágrima de alegria. E lembra do poema do Lêdo; desta vez, “na nova cartilha”, foi Eva quem “viu a greve”, quem “viu o povo”.

Cátia Simone Machado Moraes, aluna do oitavo semestre de Letras EaD na Universidade Federal do Pampa, campus Jaguarão, Polo Alegrete.

Apaixonada por Literatura desde a infância, hoje realiza aos 44 anos o sonho de cursar Letras.

 

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