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Um olhar sobre a Gastronomia Gaúcha: do Passado Missioneiro ao Presente

por Vilson Flores dos Santos e Paulo Roberto C. da Silveira

Este texto é baseado na tese de autoria de Vilson Flores dos Santos apresentada ao Programa de Pós Graduação em Extensão Rural do Centro de Ciências Rurais da Universidade Federal de Santa Maria com o título “O surgimento da agropecuária missioneira no Rio Grande do Sul e as derivações gastronômicas”. para a obtenção do grau de Doutor em Extensão Rural, em dezembro de 2010.

Atualmente, existe uma crescente mobilidade de pessoas e produtos entre diferentes regiões em escala mundial, caracterizando um período de globalização econômica e social. A pandemia da COVID-19 intensifica essa sensação de integração, visualizando-se uma relativa uniformização planetária, a qual atinge hábitos e práticas que envolvem também a Gastronomia. Em reação a esse processo de uniformização, percebe-se a crescente valorização das culturas regionais, impactando nos estilos de consumo.

Logo, na gastronomia, observa-se uma tendência de disseminação de um estilo alimentar: o Fast Food caracterizado como uma alimentação rápida e marcada por ingredientes comuns a diferentes recantos do mundo. Por outro lado, verifica-se o resgate de uma culinária enraizada no saber tradicional e transmitida de geração a geração. Se o Fast Food padroniza gostos e práticas alimentares – alimentação fora de domicílio, utilização de pré-prontos e produtos ultra processados–, as gastronomias locais reforçam uma herança culturalmente difundida em determinada região.

Aqui, destacamos um saber gastronômico aquele que se ancora na história das Missões Jesuíticas do Sul do Brasil. Essa gastronomia que exprime sentimentos vividos e valores, formando uma das mais significativas e importantes manifestações do ponto de vista econômico e também cultural e fortemente enraizadas no universo do cotidiano dos atores sociais do lugar.

No caso do Rio Grande do Sul, costuma-se falar de uma culinária gaúcha; mas existem diferentes entendimentos do que se enquadra nesse conceito. Observa-se que a culinária gaúcha uma variante da miscigenação étnica: a gastronomia representa as distintas manifestações culturais existentes no hoje estado do Rio Grande do Sul. Há, nas autoridades governamentais do estado (Secretaria Agricultura, Pecuária e Agronegócio), uma forte corrente no sentido de não mais considerar somente os costumes alimentares do homem campeiro platino tais como: churrasco, carreteiro, o arroz de china pobre, pucheiro, quibebe, mandioca e batata-doce como os únicos representantes da culinária gaúcha. Aponta-se pela pertinência de uma política que incentive o setor quando possam ser resgatados e recriados pratos típicos de distintas regiões e patrimônios étnico-culturais, inclusive dos imigrantes europeus – que chegaram em um período posterior no território gaúcho – sejam alemães e italianos sejam poloneses e outros. Esse resgate plural, além de potencializar o turismo, valoriza a cultura, a agropecuária e a geração de novas fontes de renda e trabalho. Nesse sentido, defende-se como necessário a valorização da culinária trazidas por todas as etnias que compuseram a história do Rio Grande do Sul.

Entretanto, vale lembrar que estes pratos acima citados, embora possam não ser os únicos representantes de uma culinária gaúcha, devem ser considerados os propulsores dela, pois estão enraizados no processo alimentar diário da população Gaúcha. E, deve-se considerar que se originam em um período histórico em que ocorreu a ocupação do território gaúcho, quando foi adotada por os segmentos étnicos que aqui chegaram.

O processo de estabelecimento de Missões Jesuítico-Guarani, por exemplo, gerou um conjunto de conhecimentos oriundos da interação entre o saber dos europeus e dos nativos, os quais com o tempo foram se consolidando também em uma rica culinária, incorporando a contribuição dos descendentes de africanos e portugueses. Essas formas de preparo dos alimentos se desenvolvem como hábitos alimentares, em coerência com a característica específica do agroecossistema, a qual possibilita a disponibilidade de produtos de origem animal e vegetal para uso alimentar e como uma “medicina” popular.

Esses hábitos alimentares se transformaram em uma Gastro-nomia (em Grego nomos= lei e gastro= alimentação), compreendida como um ramo de conhecimento que abrange a culinária, as bebidas, os materiais usados na alimentação e, em geral, todos os aspectos culturais a ela associados. Desse modo, estabelecem-se normas de alimentação, envolvendo as técnicas de elaboração de pratos típicos da culinária gaúcha, os espaços sociais de convivência e eventos em que são servidos, partindo de ingredientes produzidos pela agricultura e pecuária nativa.

As manifestações gastronômicas típicas de uma culinária de origem missioneira estão fortemente relacionadas à agropecuária regional e têm alimentado no território denominado Missões, e na maioria do estado do Rio Grande do Sul, uma chama viva cultural e relações de afetividade, envolvendo danças e vestimentas, práticas sociais. Essas manifestações estão presentes em exposições, feiras, eventos do Movimento Tradicionalista Gaúcho, rodeios, festivais de música e gastronômicos, e outros eventos, sempre evidenciando esses costumes e hábitos adquiridos no passado nesta região das missões.

Deve-se salientar que através do tempo histórico-social estas manifestações estão se ressignificando, ou seja, sofrem transformações quanto aos hábitos de consumo e formas culinárias, porém permanece seu significado enraizado no patrimônio cultural. Esta tradição Gastronômica não se perde com o tempo, observando-se hoje um forte culto a estes hábitos nos jovens, ocasionando assim a sua continuidade. Deve-se lembrar um dos hábitos contemporâneos mais presentes no seio da população Gaúcha: o saborear do Chimarrão ou Mate remonta aos indígenas Guarani que viram na Erva-Mate – planta nativa na região das Missões – propriedades digestivas, sendo comum tomarem um chá com as folhas desta planta. Este hábito foi se transformando com a inclusão da Cuia – feita de porongo planta também conhecida dos nativos – e da Bomba –antes de Bambu e depois de metal –. O “tomar chimarrão” esteve associado aos hábitos dos tropeiros e carreteiros que podiam cruzar o estado e, inclusive, ultrapassar suas fronteiras, levando os equipamentos, a erva e a prática de sorve o “Mate” como auxílio digestivo diante do consumo elevado de carne.

Assim, como o Chimarrão, o churrasco como forma de consumir a carne e o arroz carreteiro – originalmente com charque e hoje também com carne picada – e o arroz de china pobre – com linguiça – também estiveram a uma necessidade de tropeiros e carreteiros em produzir um alimento rápido e na beira da estrada sem recursos técnicos característicos nas cozinhas das residências.

Como o passar do tempo, diante da urbanização da sociedade se verificou a manutenção desses hábitos em contextos onde são vistos como mediadores de sociabilidade. E atravessaram os anos e disseminaram-se para além das fronteiras gaúchas com as migrações de populações para outras regiões do Brasil. Tornando-se, inclusive, presentes em todas regiões brasileiras.

No Rio Grande do Sul é comum, atualmente, ver esses hábitos alimentares nas famílias gaúchas, sendo comum receber uma visita com churrasco, ou ainda aos finais de semana servir entre os familiares churrasco ou fazer um carreteiro de charque em encontros com amigos.

Desta forma, ao longo do tempo, foram sendo construídos e passado de geração em geração os hábitos e costumes desde as missões – raiz mais profunda desses costumes –, passando pelas estâncias e mais tarde, as fazendas e granjas; se transformando no culto de um passado de brutalidade para um presente cavalheiresco, no qual as figuras do regionalismo são cultuadas pelos seus feitos como integrantes de uma cultura que encerra práticas sociais que se perpetuam através do tempo.

Vilson Flores dos Santos é Doutor em Extensão Rural e pesquisador associado do Núcleo MOVER/UFSC;
Paulo Roberto C. da Silveira é Doutor pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas e professor da UNIPAMPA, Campus Itaqui.

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Revisão de Cristina dos Santos Lovato.