Marcos Vinicius da Silva Goulart
Que vidas são vivíveis e que vidas são matáveis? Aceitaríamos que o Estado, tal como conhecemos desde o fim da modernidade, ousasse fazer esse tipo de questionamento para pautar suas ações de governo? Esses questionamentos vão direto àquilo que um Estado não poderia enunciar, e a simples hipótese de tais perguntas colocam-no em uma dimensão política estranha, contraditória e brutal. Contudo, as experiências contemporâneas de controle de pessoas, vigilância e terror em campos de refugiados em várias partes do mundo; em centros de detenção de imigrantes nos Estados Unidos e a ocupação de territórios palestinos por Israel indicariam um modo de controle de pessoas e territórios pautados pela inferiorização de sujeitos em relação uns aos outros. Esses sujeitos, sob o jugo do Estado, se tornariam pessoas sem cidadania, se tornariam desprezíveis, se tornariam matáveis.
Sujeitos matáveis e vidas não vivíveis! É sobre isso que trata a necropolítica, conceito elaborado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para explicar as novas formas de governo contemporâneo. No Brasil, esse conceito tem sido muito utilizado por pesquisadores que lidam com a temática do racismo. Eles veem na necropolítica uma chave de leitura para explicar o extermínio da população negra no Brasil, por exemplo. Mbembe, portanto, apresenta-nos um conceito fundamental para compreendermos o desenvolvimento das formas de poder que se materializam num Estado que, com o capitalismo na sua forma neoliberal, encontram a sintonia perfeita, ao produzirem aquilo que Wendy Brown (2018) chamou de cidadania sacrificial, que produz sujeitos sacrificáveis pelo bem do desenvolvimento econômico de um país. Há uma convergência entre esse conceito e a necropolítica, porém, embora tenha o citado, o foco por ora é na necropolítica.
O que é necropolítica?
Em 2 de março de 1757, Damiens era submetido a um suplício terrível por cometer um parricídio. Seu sofrimento, em praça pública, descrito em detalhes por Michel Foucault (2007), materializava a soberania, a produção da morte por meio da punição pública e espetacular, a completa submissão de um indivíduo ao poder de um soberano. Esse tipo de poder é aquele teorizado pelas filosofias políticas do contrato social, que é cedido a um soberano como uma espécie de direito originário, justamente para a manutenção da ordem e do próprio Estado. Thomas Hobbes é um dos teóricos da soberania e é dele a hipótese de que sem Estado viveríamos uma guerra de todos contra todos. A manutenção do poder do soberano, nesse sentido, implica sua própria sobrevivência e seus súditos teriam o dever de zelar por isso. Esses súditos estão sujeitos à morte caso suas condutas não condigam com os desejos do soberano, que teria o poder de fazer morrer ou deixar viver (FOUCAULT, 2010).
Entre os séculos XVII e XVIII, os mecanismos do poder passam a agir sobre o corpo individual, mas não para matá-lo, e sim, para torná-lo adestrável e produtivo. Tem-se o interesse crescente na vigilância, na prisão, na escolarização centrada no disciplinamento, por conseguinte, na formação de corpos dóceis (FOUCAULT, 2007). Contudo, surge algo novo a partir de meados do século XVIII: os mecanismos do poder começam a se centrar no corpo espécie, no corpo humano na medida em que ele é parte de uma população. Ademais, não podemos desconsiderar que esse novo poder sobre a vida vai operar entre a primeira e a segunda Revolução Industrial, nas quais os modos de produção foram completamente alterados, exigindo cada vez mais sujeitos úteis para o novo mundo econômico, isto é, vidas vivíveis. Sobre a vida opera um biopoder centrado no corpo individual, porém, na exata medida em que ele faz parte de uma população; daí biopolítica – uma tecnologia de poder centrada no humano como espécie, como um ser biologicamente conhecido e a se conhecer. Temos um Estado que crescentemente se preocupa com taxas de natalidade, taxas de mortalidade, campanhas de saúde pública e, mais adiante, com o crescimento econômico e com a produção em larga escala de capital humano. Ou seja, nos meandros da biopolítica o que se opera é um fazer viver ou deixar morrer (FOUCAULT, 2010).
Explicar a emergência do conceito de biopolítica em Foucault é fundamental para compreendermos o conceito de necropolítica em Mbembe, já que ele usará essa noção conjugada com outras, a saber, estado de exceção e soberania para a sua elaboração teórica. Antes de iniciar essa explicação, gostaria de ressaltar que vou tratar biopoder e biopolítica, assim como necropoder e necropolítica como sinônimos, mesmo sabendo que há diferenças precisas entre eles, mas, isso não atrapalhará a compreensão introdutória dos mesmos. Em primeiro lugar, Mbembe (2016) retoma a discussão sobre a noção de soberania, mas sob outro prisma que não aquele dos contratualistas do século XVII e XVIII, como já citei. O filósofo camaronês não vai se concentrar no aspecto racional e originário do Estado, no qual sujeitos, num ato racional, teriam fundado a soberania para garantir sua própria segurança e seus próprios direitos. Sua preocupação será com uma soberania que operaria através da “[…] instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações” (MBEMBE, 2016, p. 125). Ou seja, ele está preocupado com aspectos menos abstratos: a vida e a morte.
Mbembe vai além de Foucault ao demonstrar que a noção de biopolítica é insuficiente para descrever as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte. No entanto, a relação que Foucault faz entre racismo e biopoder é essencial para entendermos a constituição dos Estados a partir do século XVIII, ainda mais, considerando que o Estado Nazista, conjugando racismo e biopoder, se utiliza do poder de morte, o discurso da raça ariana e do terror como seu agente mobilizador. Ou seja, o nazismo é um paradigma de Estado Biopolítico. Mbembe, de outro modo, vê limitações nessa leitura. Para ele, a emergência da biopolítica ocorre na constituição dos Estados Modernos, por volta do século XVI, com a escravidão e as invasões coloniais, que ocorreram na África e no chamado Novo Mundo, as Américas. É exatamente neste ponto que Mbembe se afasta de Foucault. Sei que o debate acerca do biopoder entre Foucault e Mbembe poderia ser abordado em suas minúcias, mas não é esse o meu interesse aqui, já que o caráter deste texto é introdutório.
O que podemos concluir a partir do debate apresentado acima? Podemos deduzir que a política de produção de morte, o deixar morrer, que é parte do biopoder e da soberania, tem o racismo como parte fundamental. Ou seja, falar em necropolítica é falar em racismo, já que desde o período colonial vem se produzindo um poder de matar, tornando escravos pessoas africanas e nativos das Américas, que deveriam ser mantidos vivos apenas na medida em que fossem produtivos para o sistema colonial. A partir daqui, estamos estritamente no campo da necropolítica, mas, ainda falta um elemento: a ideia de Estado de Exceção.
Agamben (2004) afirma que o Estado de Exceção é um paradigma de governo na contemporaneidade. Isso significa que aquela figura do direito utilizada em situações pontuais, que representassem perigo para um Estado, se tornou a regra. O soberano, para Schmitt, era aquele que poderia decidir sobre o Estado de Exceção, mas, ao que parece, se voltarmos para Agamben, podemos dizer que já não está em jogo uma mera decisão pontual, mas uma forma de governo – O Estado de Exceção é permanente, a suspensão da ordem jurídica é uma tecnologia de governo . Nele, parcelas da população tem seus direitos violados, não são sequer considerados humanos. O campo de concentração nazista, por exemplo, é um espaço que se abre quando o Estado de Exceção se torna regra (AGAMBEN, 2002). Mbembe, contudo, vai transpor essa figura do campo para o terror e a ocupação colonial. É assim que o conceito de necropoder se ampara no conceito de exceção, de soberania e biopoder. Assim como para Foucault o nazismo era um paradigma do biopoder, para Mbembe, a ocupação colonial contemporânea da Palestina é um paradigma do necropoder. Frantz Fanon, para Mbembe, exporá um exemplo do necropoder agindo na espacialidade da ocupação colonial:
A cidade do colonizado […] é um lugar mal-afamado, povoado de homens mal-afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. (FANON, 1968, p. 29).
Qualquer semelhança com a nossa experiência cotidiana não é mera coincidência e é aqui que o conceito de necropolítica encontra relação com o que vem ocorrendo no Brasil. No fundo, estamos falando de um conceito que demonstra como o Estado adota uma política de morte, ao tratar indivíduos como os povos objetos do processo colonizador apresentado por Fanon. Esse sujeito objeto do processo colonizador, transpondo para a nossa realidade, é o menino negro na favela que “desaparece” em uma ação policial; é o morador de favela desassistido pelo poder público; os indígenas expostos aos garimpeiros, desmatadores e grileiros sem nenhum amparo do Estado; é o pobre que se vê obrigado a trabalhar, arriscando a própria vida, diante de um vírus mortal sem qualquer amparo econômico. Enfim, o que seria necropolítica? O poder do Estado, envolvo em sua soberania, de produzir e regular “sujeitos indesejados”, sujeitos em que o deixar morrer não é um efeito colateral da política, mas, uma estratégia para a manutenção do próprio poder do Estado. Necropolíticas são ações de eliminação e destruição de sujeitos considerados pelo Estado, como matáveis – não há dignidade humana.
Necroliberalismo e as novas formas do poder de matar
A necropolítica nos ajuda a pensar o racismo estrutural; as incursões da morte feitas pela política militar em favelas do Brasil e a morte de jovens negros por agentes do Estado. Sobre esse tema, há bastante discussão e pode-se dizer que o conceito de Mbembe é fundamental para elucidar essas práticas de produção de sujeitos matáveis. Contudo, queria finalizar este texto, pontuando algumas questões ligadas à economia. Mbembe (2020), recentemente, utilizou o termo “necroliberalismo” para se referir a lógica de sacrifício presente nos discursos econômicos atuais e que ouvimos muito no Brasil atual. Necroliberalismo é uma variação da necropolítica e indica que o neoliberalismo é fundamentalmente uma política da morte. Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro, ao criticar a política de isolamento social de governadores, afirmou que os governadores e prefeitos querem matar o povo de fome com suas políticas de “lockdown” (MENDONÇA, 2021). Ora, sem uma política eficiente de auxílio financeiro para os mais pobres, o presidente sugere que as pessoas têm duas opções: arriscar a própria vida diante do coronavírus ou morrer de fome em casa. Ou seja, a única saída para os mais pobres, nesse caso, as vidas matáveis, é submeter-se ao risco da morte.
O neoliberalismo enxerga todos os sujeitos como capital humano, como agentes de mercado, isto é, suas próprias vidas passam sempre pelo prisma econômico, temos uma economicização da sociedade (BROWN, 2018). Todos nós somos responsáveis pelo desenvolvimento do país, logo, teríamos o dever moral de se sacrificar em prol da economia – e esse tipo de discurso se tornou regra desde 2019. O neoliberalismo, isto é, o necroliberalismo, tem em si essa dimensão de sacrifício de vidas, nele o trabalhador tem o trabalho precarizado, tem sua aposentadoria retirada, seu bem-estar se torna supérfluo para o mercado e deve ser eliminado. Necropolítica é uma política de produção de sujeitos matáveis, cidadanias sacrificiais, vidas com menos valor que outras. Como afirma Mbembe (2020, n.p.) na entrevista que mencionei, “esse sistema [o necroliberalismo] sempre operou com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado”. Agora, a pergunta do início do texto pode ser respondida: é o Estado Necropolítico que decide que vidas são vivíveis e que vidas são matáveis.
Marcos Vinicius da Silva Goulart é Professor Orientador Educacional (SMED/São Borja). Doutor em Educação. Mestre em Psicologia Social e Institucional. Licenciado em Filosofia. Contato: mvinicius.goulart@gmail.com.
Referências
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
BROWN, W. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.
FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, n. 32, p. 123–151, dez. 2016.
MBEMBE, A. Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da “necropolítica”. [entrevista concedida a] Diogo Bercito. Folha de São Paulo, p. n.p., 30 mar. 2020.
MENDONÇA, A. Bolsonaro volta a criticar lockdown: “Pessoal vai morrer de fome?” Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/03/03/interna_politica,1242858/bolsonaro-volta-a-criticar-lockdown-pessoal-vai-morrer-de-fome.shtml. Acesso em: 4 abr. 2021.
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